sexta-feira, 27 de março de 2009

A Cigarra, a Formiga e a Aleluia

A Cigarra, a Formiga e a Aleluia
Sidnei Alves da Rocha
No verão, período de vacas gordas, a Cigarra e a Formiga trabalhavam, trabalhavam, trabalhavam...
A Formiga, no entanto, pensava no futuro e economizava cerca de 80% daquilo tudo que ganhava como recompensa do seu suor. Já a Cigarra, dissimulada como ela só, quanta displicência e quanto descaso com o futuro. Gastava tudo o que recebia. Esbanjava à vontade. Colocava a culpa na prestação do carro e na mensalidade do curso superior feito por ela. Tudo mentira. Ela vivia fazendo festas e cantando. Vivia de carro para cima e para baixo. Não estava nem aí para o inverno vindouro.
Suas festas eram regadas a comida e a bebida de excelente qualidade (sem falar na quantidade) e cada convidado que ia embora levava alguma coisa: um prato disso, um prato daquilo. Ela dizia não gostar de comida amanhecida. Comida requentada lhe dava alergia, náusea.
Acabaram-se as prestações do carro e acabou-se o curso superior, mas mesmo assim a Cigarra não economizava. Daí passou a esbanjar mais. Claro, sobrava mais dinheiro.
Adorava explorar a Formiga, coitadinha, mas pelo menos ela era sempre convidada para os seus banquetes e tudo aquilo que levava para casa depois da festa acabava minimizando um pouco a exploração.
Apesar de as festas, os banquetes, os passeios de carro serem bancados pelo Cigarro, que vivia maritalmente com a Cigarra, a Formiga tinha de bancar metade das festas. Foi então que o Cigarro foi esfriando, esfriando, até se apagar de vez e sumir de casa, deixando a Cigarra sozinha com a Cigarrinha.
Chegou o inverno. A crise econômica veio junto. E o tempo das vacas magras se instaurou, fincou pé e não arredava de jeito nenhum e a Cigarra sentiu na pele a sua postura desregrada.
Começou a explorar a Formiga ainda mais. Alguém tinha de pagar por seus erros. Quando lhe dava carona, cobrava gota por gota do combustível gasto (muitas vezes só lhe oferecia carona para obter recursos). As festas se escassearam e nada, absolutamente nada mais saía daquela casa. Nada de comida. Nada de bebida, nada de nada... A Cigarra teve de mudar seus hábitos. A crise a fez adorar comida requentada.
A Formiga estava bem. Economizara para o inverno e tinha reservas. Ela tinha bom coração, mas como ajudar a Cigarra se mesmo com aquela lição ela não aprendia? Continuava comprando roupas, indo a bailes e a festas, comprando bons presentes de aniversário para todo mundo, viajando. Só a Formiga, pobrezinha, não ganhou presente bom. Em seu aniversário a Cigarra lhe deu um presentinho de um e noventa e nove. Era um golfinho que deveria ficar suspenso no ar, com cinco cordinhas amarradas nele e mais cinco ferrinhos nas pontas das cordinhas. Os ferrinhos, com o vento, batiam um no outro e faziam um barulhinho até legal, só que bem baixinho devido ao tamanho reduzido da peça.
A Cigarra era incorrigível. Tinha deixado de esbanjar com comida e bebida, mas os outros gastos costumeiros continuavam, alguns até se multiplicavam dia após dia.
Em sua última viagem prevista para durar 10 dias (estendida para 20), a Cigarra ganhou a estrada e deixou em sua geladeira algumas coisas, mas as melhores, segundo ela era um pedaço de carne bovina (Cigarra é um bicho extremamente carnívoro) e um galãozinho de iogurte de 900 ml. Deixou também as chaves de sua casa com a Formiga para que esta fosse lá de vez em quando para ver como iam as coisas e abrir as janelas para entrar sol.
Quando a Cigarra retornou da viagem, vistoriou a casa inteira e começou a acusar a Formiga de ter levado embora o seu pedaço de carne e de ter ingerido o seu iogurte que haviam desaparecido de sua geladeira. Não tinha quem a fizesse mudar de ideia.
A Formiga, claro, defendeu-se e jurou de mãos postas que não tinha cometido tal delito. Alegou inocência. Mas não tinha jeito. A Cigarra não se convencia.
A Formiga acusou-a de sofrer de amnésia. Às vezes ela acusava a Formiga de ter pegado alguma coisa sua e quando ia procurá-la direito, tinha-a guardado em outro lugar. Tudo bem que a Formiga tinha antecedentes, pois já lhe furtara um peixe de seu congelador, mas ela fez isso como uma boa ação. O peixe estava para se estragar e era um peixe grande, bonito, saboroso.
A Cigarra ficou tão obcecada em provar que a Formiga tinha culpa no cartório, querendo pegá-la com a boca na botija de qualquer maneira, que sonhou e no sonho a Cigarra pressionava a Formiga de todo jeito (só faltava tortura física, porque a psicológica já estava sendo exercida). Mas isso não estava dando certo. A Formiga parecia inocente mesmo.
A Formiga, com sua carinha de santa (só lhe faltava aureola), já estava quase convencendo a Cigarra de que aquilo tudo não passava de mais um de seus ataques de amnésia, mas antes que isso acontecesse, no sonho apareceu a Aleluia, uma vizinha fofoqueira da Cigarra que lhe disse que viu alguém entrando na casa, porém não se preocupou porque o visitante estava com as chaves. O invasor, segundo ela, tinha as mesmas fisionomias da Formiga. Ficou atenta e ouviu um bip intermitente, um barulhinho chato e contínuo que ia aumentando aos poucos. Pensou em deixar para lá, mas preocupou-se com a Cigarra e resolveu dar uma espiadinha. Chegou mais perto e viu a cena. Lá estava alguém que, da posição em que estava, não lhe era permitido ver direito, mas que se parecia, como dissera antes, muito com a Formiga. Porta da geladeira aberta, cadeira próxima à porta, lá estava o invasor sentado com os pés dentro da geladeira (não façam isso em casa, é ecologicamente incorreto), sentindo todo o frescor que emanava de seu interior e se deliciava muito com o galãozinho de iogurte todo suadinho de tão gelado, bebido diretamente no gargalo. Com o calor, vez em quando o passava pelo rosto para se refrescar mais e fechava os olhos para se deliciar, ao mesmo tempo em que abria a boca e soltava um “ah” de satisfação. Dizia a Aleluia fofoqueira que o danado do invasor se deliciava tanto com aquilo que nem se importava com o bip contínuo que a geladeira insistentemente fazia, sinal de alerta que emitia quando sua porta ficava aberta por muito tempo. Quando saiu, comadre (a fofoqueira a chamava assim), ainda levou um embrulho até bem grandinho que retirou do refrigerador.
A Formiga ouvia toda a história bem desconfiada e ante o ódio que fazia brilhar os olhos da Cigarra, foi saindo de fininho.
Quando a Cigarra se virou para cobrar as devidas explicações da Formiga, só enxergou a poeirinha da sua motocicleta sumindo no horizonte.
A Cigarra acordou assustada, banhada em suor e gritando:
– Eu sabiiiiiiiiiiiiiiiia!

segunda-feira, 16 de março de 2009

O virgem

O virgem
(Drama em três quadros ou três pronomes)
Sidnei Alves da Rocha
Advertência: Esta história contém alto teor erótico, não sendo recomendada a sua leitura a todas as idades; portanto, caberá aos pais e/ou responsáveis a decisão de divulgá-la a suas crianças e adolescentes. Aprecie com moderação!
Quadro I
Eu

Uma conversa ao telefone pode suscitar muitos mal-entendidos e conclusões precipitadas. Se formos penetras na conversa, então, nem se fala, já que ouvimos somente uma parte do diálogo caso o telefone não esteja no viva-voz.
Pois bem. Minha esposa estava ao telefone com a minha cunhada ou a irmã dela, como preferir, numa conversa aparentemente normal. Falavam sobre acasalamento de cachorros. Pelo que pude entender da fala da minha esposa, minha cunhada estava lhe dizendo que a cachorrinha dela estava no cio. Até aí, tudo bem, cachorros costumam ficar no cio de vez em quando.
O meu drama pessoal começou quando minha esposa disse:
– Pode trazer a Serena (o nome da cachorrinha da minha cunhada) sim que o Sidnei (este, no caso, sou eu) vai ficar em casa a semana inteira.
Interrompi a leitura do livro e olhei para a minha esposa com uma dúvida cruel a me afligir. Acaso quererá a minha amada que eu cruze com a cachorrinha? Espantei-me. Nunca fizera algo semelhante (acredito que, na história deste país, nenhum marido o tenha feito) e temi pela minha dignidade moral. Não havia escapatória possível, afinal, que marido em sã consciência irá contestar ou desobedecer a esposa? Cruz credo!
A conversa prosseguiu e minha esposa disse a ela que, do cruzamento, iria sair cada cachorrinho tão bonitinho.
Olhei-me no espelho e me lembrei da cara e do perfil da cachorrinha, fiz uma careta e pensei “não vai não!” Não ia dar certo, não tinha chance de dar certo. Eu sou alto e magro e ela, uma basset, comprida e baixa.
Comecei a entrar em desespero. Como iria sair daquela enrascada?
Será que teria de pagar pensão alimentícia? Veterinário? Plano de saúde?
– Isso não pode ser verdade! Isso não está acontecendo... – pensei.
Pode trazer a Serena que o Sidnei cuida sim.
Pensei em interromper a conversa. Aquilo já estava passando dos limites, já estava se tornando constrangedor para mim. De quem eu teria de cuidar? Só dela? Dela e dos filhotes? Só dos filhotes?
– O Jack vai adorar ter uma companheira. Quem sabe assim ele perde a virgindade – disse minha esposa.
Ah, está explicado! Não é para mim, é para o Jack. Tinha até me esquecido do nosso cachorrinho.
– Até mais e obrigada! – minha esposa concluiu a ligação.
Eu estava aliviado.
Quadro II
Ele

Sou um cachorro poodle, de natural tímido e não sou dado a convenções sociais, grandes baladas ou relacionamentos ocasionais.
Talvez estes fatores tenham me mantido virgem até hoje e isso é muito tempo para os padrões caninos, que iniciam a vida sexual muito cedo, já que eu tenho oito anos.
Mas nem por isso posso me queixar. Vivo feliz em minha casa. Tenho o carinho dos meus donos (papai e mamãe como costumo dizer) e gozo aqui de bastantes mordomias e privilégios.
Porém, meu sexto sentido, naquela manhã, estava me dizendo que os dias de virgindade estavam contados e que em breve eu iria perdê-la (ou não). Dito e feito.
Lembro-me bem da sua chegada. No início da tarde de um dia qualquer parou um carro no portão de casa. Um homem desceu (eu o conhecia), abriu a porta do lado do passageiro e arrastou para fora uma cachorrinha. O portão não me deixava enxergá-la direito e uma fina chuva estava começando.
Meu dono foi até o portão, conversou alguma coisa com o homem, pegou na cordinha que amarrava a cachorrinha e a trouxe para dentro.
Minha língua fremia.
Ela foi solta e eu cheguei mais perto para vê-la melhor.
Nossa, ela era linda, do jeitinho que eu gosto. Pêlos curtos e avermelhados. Muito simpática em toda a sua extensão.
Sabe, pêlos curtos me excitam.
Acho que foi amor à primeira vista. Fiquei encantado por ela. Era só nos conhecermos melhor e iniciarmos um relacionamento amoroso.
– Espero que ela não seja fácil – pensei – que não queira... que não queira... (ah, você sabe!) já de cara. O diálogo para mim é fundamental.
Ai, ela tá fazendo xixi e olhando para mim. Mau sinal. Está dando a entender que está disponível.
Vixe! Me deu uma vontade de fazer xixi também. Que vergonha! Vou ter de fazer. Não queria deixar transparecer que sou virgem. Pensei entre dentes e com as perninhas cruzadas e bem apertadas. Nossa, não vai dar pra segurar. Se não fizer agora, vou fazer nos pêlos. Vou ter de me agachar. Como se levanta a patinha mesmo? Droga, isso só quando eu não for mais virgem. Que coisa mais sem graça. Não dá nem para fingir.
Pronto. O caldo já tinha entornado. Bola pra frente e...
Ela começou a se esfregar em mim!
Ela é fácil. Assim fica difícil. Será que todas são afoitas desse jeito? Nenhuma vai querer conversar primeiro? Puxa, tenho sérios problemas com estas investidas assim, tão efusivas. Elas não combinam com o meu jeito reservado.
Vamos ver no que dá. Vou cheirá-la para ver se está no cio. Hum... parece que está.
Ai meu nariz! Cuidado com o rabo! Ai! Ui!... Cinco rabadas na ponta do nariz e quatro no olho, em sequência, ninguém merece.
Espera aí! O que vou fazer com o rabo dela na hora H? tenho de achar um jeito de pô-lo de lado.
Gente, que horror! Ela está bebendo água empoçada da chuva! Que nojo!
Lá vem ela de novo. Como estava mesmo no manual? Ah, sim! Subir nela e ficar bombando até encaixar.
Opa, minha patinha esquerda ficou na frente. Foi mal. Vamos de novo.
Vai! Vai!
Essa cachorra é muito despoodlerada!
Lembra do manual, da parte que fala da investida e manda brasa.
Agora...
Xi, ela saiu de baixo.
Credo, não consigo controlar meu quadril. Mesmo sem ela embaixo de mim ele fica nesse vai-e-vem frenético. Tô parecendo dançarino do créu na velocidade cinco.
Tenta de novo...
De novo...
De novo...
...
Caramba, cansei!
Acho que vou deixar para amanhã. Depois de tantas tentativas, acho que não vou mais funcionar.
Preciso me deitar.
Estou com sono.
Boa noite!
...
Nossa, oito dias tentando não é fácil.
Quando ela for embora vou ter de treinar. Eu funciono, sabe? Meu problema só é pontaria.
Ouvi dizer que irão levá-la hoje. Vou insistir mais um pouquinho.
Ela está deitada na sua cadeirinha. Vou mostrar que estou a fim. Vou latir para ela se levantar.
Os latidos não estão funcionando. Vou latir mais forte. Vou vencer pelo cansaço.
Oba! Levantou-se!
Agora, vai...
Xi, não deu de novo.
Pronto, voltou a se deitar.
Latidos...
Vai.
Na trave!
Pare de se deitar!
Latidos...
U-hu!
Não é possível!
Ei, colabore, né? Fique em pé!
Puxa, chegaram.
Estão levando-a embora. Que abusados, logo agora que eu ia conseguir...
Quadro III
Ela

Sou uma cachorrinha basset, bem avançadinha e no que se refere a amor, relacionamentos, essas coisas, sou do tipo que se adapta às necessidades do meu par.
Se percebo que ele quer alguém tímida, eu sou tímida. Se percebo que ele quer alguém que parta para cima, ai sou bem afoita, mesmo sabendo que as mais saidinhas assustam os machos que se acham e querem sempre ser eles a “chegar” nas fêmeas. Muitos odeiam quando ocorre o contrário disto.
Sou bastante jovem ainda, mas já tenho experiência. Já engravidei e tive uma porção de filhotes.
Agora estou no cio novamente. Espero encontrar alguém que me preencha e que possa curtir comigo este momento tão especial.
Vivo feliz aqui. Gosto de me esfregar nos pés e pernas dos meus donos, botar minha cabecinha nos pés deles e receber carinho, mas estes estão meio escassos.
Lá vem o meu dono. Está chegando perto de mim. Ei, pare! O que está pondo em meu pescoço? Pare, vai me enforcar...
Não, calma, é só uma coleira com uma cordinha.
Oba! Vão me levar para passear! Espero que seja bem legal!
Que chique, bem! O passeio é de carro! Isso não é para qualquer cachorro.
Meus olhos não alcançam as janelas. Não consigo enxergar nada daqui de baixo. Pra onde estou indo? Pronto, já parou.
Estão me tirando do carro. Acho que é por aqui que eu fico.
Que casa é essa?
Vão me deixar aqui só, será? Não quero ficar sozinha neste lugar estranho. Não me puxe, não quero ir, não quero! Pronto, já me arrastou.
Ah, eu conheço aquele casal que está na varanda. O homem está se aproximando. Que chato, começou a chover. Eu prefiro sol. É mais caliente.
Ele pegou minha cordinha e está me levando para dentro. Vou ser simpática, abanar o rabinho e lamber os seus pés.
Será que meu dono não vai entrar? Ai, parece que não. Só faltava essa, já foi embora. O jeito é me conformar.
Estão me soltando. Acho que vão me tratar bem. Este casal é bem legal.
Nossa, que cachorro lindo. Agora que o vi.
Linguinha rosada, pêlos negros e longos, do jeitinho que eu gosto. Isso me excita de um jeito!
Está chegando mais perto. O que eu faço? Vou mostrar que estou no cio. Vou fazer xixi e deixá-lo me cheirar.
Será que não vou parecer muito fácil? Não seria melhor fazer jogo duro e deixá-lo correr atrás de mim como um cãozinho sem dono?
Ele também foi fazer xixi. Ai, é virgem. Não ergueu nem a patinha.
Acho que dar uma de fácil foi a melhor estratégia.
Ele está vindo. Me cheira, vai. Vou abanar o rabo para demonstrar simpatia.
Xi, desculpe, foi mal. Acho que acertei o focinho dele. Aí, de novo... Tadinho.
Nas primeiras investidas vou sair de baixo dele só para não dar muita bandeira. Depois eu deixo numa boa.
Que engraçado, o quadril dele parece de mola!
Isso, assim. Só tira a patinha da frente.
Ele não está conseguindo.
Vou ter de ajudar.
Puxa, estou me encostando o que posso em você. Que mais quer que eu faça?
Vai, agora.
Você pode. Já vai conseguir.
Isso!
Hum...
Vamos, lá.
De novo.
U-hu!
É, não deu de novo.
Ué, aonde ele vai?
Assim não dá, desistiu.
E como eu fico nessa?
...
Depois de oito dias minhas costelas estão me matando. Não há esqueleto que aguente um mala desses subindo e descendo dia e noite.
Vou é descansar na minha cadeirinha que eu ganho mais, já que não tá rolando mesmo.
Que cara chato. Sabe que não está conseguindo e fica latindo na minha cara.
Vá lá, sujeito. Vou me levantar, mas nem vou descer da cadeira. Só vou me virar.
Eu sabia. Não deu certo.
Acho que já chega. Preciso dormir. Mas como? Com estes latidos é impossível. Vou me posicionar novamente e fazer suas vontades. Ouvi dizer que vou embora hoje mesmo.
Vai.
Agora.
Ta quase lá (às vezes um incentivo ajuda).
Meu dono chegou. Será que vai me levar embora?
É, já está me levando.
...
Apesar de tudo, acho que vou sentir saudades dele. Acho que me apaixonei!

Eterno Aprendiz

Eterno Aprendiz
Sidnei Alves da Rocha
“...Viver
e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
a beleza de ser um eterno aprendiz.
Eu sei
que a vida devia ser bem melhor
e será
mas isso não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita....”
(Gonzaguinha)
Somos sabedores que os professores, aliás, qualquer profissional, devem estar em constante atualização para aprimorar seus conhecimentos e trocar experiências com outros colegas. Pensando nisso, foi promovido o 1º seminário de aprimoramento para professores de Língua Portuguesa e Matemática em Mato Grosso, denominado “Eterno aprendiz”.
Eu e mais duas colegas de Letras nos inscrevemos para mais esta aventura da língua que se realizou em Sinop, distante 160 km de Terra Nova.
Tínhamos três opções de largada. A primeira seria matar o início do curso e sair bem mais tarde. Essa foi descartada logo de cara, pois um samurai da língua não se entrega assim, tão facilmente. A segunda era sair no dia anterior à abertura do curso, dormir bem à noite e iniciá-lo bem descansados. Também descartada. Seria fácil demais. Já a terceira, mais radical, louca e própria de heróis, nacionais, claro, foi a eleita pelo trio: sair no dia do curso, no ônibus das três e trinta da madrugada para pegar o início do curso às 7 horas.
À noite comecei a pensar na viagem da madrugada e só consegui me deitar às 23h 30 e o despertador foi programado para me acordar às 2h 30.
Para a minha esposa e para mim, sem problema, mas meu cachorrinho poodle estranhou muito, pois desta vez foi tudo diferente. Ele, que está acostumado a me acordar para o levar ao banheiro, feito que realiza dando uma volta em torno da cama e choramingando ao meu lado e, caso eu não acorde com seu lamento canino, ele arranha a madeira da cama até me despertar, foi despertado por mim antes da sua hora de costume.
Mesmo estranhando, meu cachorro não disse palavra.
Saí de casa às 3h15. Encontrei-me com minhas colegas linguarudas na rodoviária e ficamos por lá, de bobeira (e quem não fica bobo com sono?) até o ônibus chegar e este, para variar, chegou atrasado e só conseguimos embarcar às 4h.
Minhas colegas entraram e exigiram suas poltronas que estavam em posse de outros passageiros, coitados, bruscamente acordados pelo estresse de quem madrugou.
Embora houvesse um senhor sentado, ou melhor, esparramado em minha poltrona que era a da janela, resolvi não o incomodar e sentei-me na poltrona do lado. Olhei-o melhor e percebi que ele era bastante gordo, não possuía um odor muito agradável e, para completar, começou a roncar como um porco.
Aguardei um instante e me mudei para uma poltrona mais à frente.
Depois de acomodado e menos incomodado, comecei a refletir e cheguei à conclusão de que o homem é um eterno aprendiz, que ele aprende até nas adversidades. Já pensou se eu tivesse exigido os meus direitos e pedido ao homem que desocupasse a “minha poltrona”? Teria ficado preso àquele canto e nunca mais sairia dali.
Ocorreu-me então uma vã filosofia que diz que nada é tão ruim que não possa piorar. Não piorou.
Ah, o curso? Bom, isto fica para outra oportunidade, pois ele dá outra ou muitas histórias.
Quanto ao retorno, não quero tecer previsões. Prefiro confiar no ditado popular que diz que “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.”

Estranho no ninho

Estranho no ninho
Sidnei Alves da Rocha
“Ver eu não vi.
Eu ouvi falar.
O que eu faço é contar.”
Extraído de um programa do Canal Futura
O copo chegou e foi posto no armário.
Causou estranheza.
Foi ficando, foi ficando, até que se quebrou na pia, transformando-se em incontáveis pedacinhos.
Houve profunda tristeza entre as xícaras.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Atalhos

Atalhos
Sidnei Alves da Rocha
Quando o moço do cerimonial anunciou os nomes do terceiro e do segundo colocados, não lhe restou mais nenhuma dúvida de que ele seria o grande vencedor da noite. Ele concorria na categoria “Produção/Edição de vídeo”. Poderia ter concorrido nas outras também, mas mudaram as regras do jogo e disseram que cada concorrente deveria participar em uma única categoria.
A categoria de Produção e Edição de Vídeo, para ele, era uma barbada, mas, mesmo assim estava apreensivo. Sempre há a possibilidade de se fazer marmelada, de se tentar beneficiar um ou outro. Ele era fera em programas de computação, reconhecidamente o melhor, por isso as mudanças nas regras. Não queriam que ele ganhasse todos os prêmios. E isso era certo.
– E o grande prêmio vai para...
Seu coração bateu mais forte, suas pernas deram uma leve bambeada e ele sentiu uma quentura no rosto.
Tinha a certeza da vitória, mas mesmo assim ficou ansioso. Todos ficam. Ninguém consegue se controlar.
A demora em abrir o envelope foi longa e isto o deixava mais nervoso ainda.
– ...Gigabyte da Silva.
Ele explodiu de emoção ao ouvir o seu nome pronunciado pelo moço do cerimonial e em meio a aplausos levantou-se e saiu da sua cadeira em direção ao corredor. Estava perto da parede e se demorou a alcançá-lo, tendo de pedir licença várias vezes.
Os aplausos cessaram-se assim que ele atingiu o corredor e começou a percorrê-lo em direção ao palco.
Ouviu cochichos e risadinhas. Falavam do seu nome e o satirizavam.
Sentiu-se envergonhado, diminuto.
Quanto mais caminhava, mais o palco parecia se distanciar dele e esta sensação aumentava a sua tortura.
Os comentários se multiplicavam e as risadinhas se emendavam umas nas outras e soavam como gargalhadas.
Ele se sentiu um nada e desejou ter na vida os mesmos recursos que se tem na hora do trabalho, na frente do computador. Ele desejou somente duas teclinhas bem próximas uma da outra “Control Z”. Seriam só dois cliques e as risadinhas e os comentários e até mesmo o seu nome seriam deletados. Mas isso só era possível no PC.
Ele próprio não gostava do seu nome. Já tentara mudá-lo várias vezes, mas disseram-lhe que isso não era possível.
Indignou-se. Conhecia tanta gente que mudara de nome. Sabia de histórias de amigos que num piscar de olhos conseguiram resolver este problema que carregavam desde muito tempo e que era motivo de chacotas, piadinhas sem graça e humilhações. Quantos e quantos casos ele conhecia pesquisando na Internet. Mas por que logo com ele não era possível? Exigiu explicações e elas lhe foram dadas.
O cartorário reconheceu que o nome era mesmo muito estranho, mas disse-lhe que não sabia se seria possível a alteração. Pediu-lhe licença e foi discutir com os colegas de repartição sobre as reais possibilidades. Não chegaram a consenso algum. Dirigiu-se ao chefe e, em questão de minutos veio com a decisão definitiva e irrevogável. O homem lhe explicou direitinho os motivos.
Gigabyte saiu do cartório. No caminho para casa ainda se lembrava das últimas palavras do cartorário martelando em sua cabeça:
– Se o problema estivesse no nome – dizia ele – tudo bem. Porém, não se muda o sobrenome. É como o pai e a mãe biológicos: você os tem para toda a vida. É impossível trocar.
Achou melhor se conformar. Teria de carregar o estranho “da Silva” para o resto da vida.
Finalmente alcançou o palco. Estava gelado e suava frio.
Passaram-lhe a palavra e disseram-lhe para não se preocupar que no começo o microfone assusta mesmo. Mas quem disse que ele tinha problemas com o microfone? Dominava-o muito bem e discursava com maestria.
Recebeu o prêmio bastante constrangido. Disse algumas palavras e foi ovacionado.
A premiação lhe trouxe um pouco de alento e ele conseguiu recuperar boa parte de sua auto-estima.
Mergulhou de cabeça no trabalho.
Na intimidade ele era conhecido por GB.
Sua mulher o chamava sempre:
– GB, venha tomar seu café da manhã!
Ele respondia:
– já vou – e não ia.
Continuava trabalhando. Nem via o tempo passar.
Gigabyte tinha um estúdio em casa. E a cada dia que passava recebia mais e mais trabalhos. Todo mundo reconhecia o seu excelente desempenho profissional.
Cometia erros como qualquer um, mas quando isso acontecia, lá vinha o Control Z e tudo era desfeito.
Aliás, os atalhos eram outra grande especialidade sua. Control combinado com P, G, C, V, A... Ele era craque nisso. Mas não tinha jeito. O Control Z era o seu favorito.
Depois daquela noite da premiação, jamais deixou de desejar usá-lo no dia-a-dia, na sua vida prática. Desfaria todos os problemas, todas as burradas, todas as humilhações que sofria. As discussões acaloradas com o chefe seriam desfeitas num piscar de olhos, antes mesmo de ser despedido.
– GB, venha almoçar! – sua mulher insistia.
E lá vinha o conhecido “já vou” e nada de ir.
E assim se sucedia: “GB, venha jantar”. “GB, venha dormir”. “GB, hoje é dia do nosso sexo mensal”. Aí ele ia.
No dia seguinte a mesma rotina. E assim virava semanas, meses, anos...
Gigabyte parecia se nutrir da mesma energia que alimentava o computador. Era uma simbiose. Ele alimentava os programas e era alimentado por eles.
Word, CorelDraw, Movie Maker, Point, Áudio e Vídeo etc, etc, etc, não tinha ação que ele não executava.
Subitamente, após um dia inteiro de trabalhos extenuantes, GB começou a sentir algo estranho no cérebro. Uma transformação aparentemente se processava ali. Podia já sentir a mudança. Aquela alteração não lhe era familiar. Fechou os olhos e olhou para dentro de si. Viu em seu cérebro um teclado que continha apenas duas teclas, Ctrl Z. E ele se deliciou.
– U-hu! – deixou escapar.
Não sabia exatamente se funcionariam, mas não tardou a descobrir.
Sua mulher gritou da cozinha:
– Droga, o arroz queimou! Se tivesse desligado o fogo cinco minutos antes nada disso teria acontecido.
GB fechou os olhos e, telepaticamente, deu dois cliques e tudo se desfez e o cheiro de arroz queimado se dissipou no ar como mágica.
Passou a ter o controle da situação, verdadeiramente dono e senhor dos seus atos.
Uma palavra mais ríspida, uma briga, uma discussão com o chefe ou com quem quer que fosse, era só apertar as teclas Control Z e tudo se desfazia.
E ele conheceu a paz.
Já não precisava mais fechar os olhos para acioná-las, pensava e pronto, estava tudo desfeito, tudo resolvido.
O tempo foi passando e já era chegado o momento de mais uma entrega de premiação aos melhores da computação. Foi se inscrever e quis concorrer em todas as categorias, mas lá vinha a regra mudada no meio do caminho de novo.
– Só pode se inscrever em uma categoria – disseram-lhe.
Não teve dúvidas. Control Z e a regra voltou a ser como antes.
Ganhou todas as estatuetas, ou melhor, ficou em primeiro lugar em tudo.
A cada vez que o cerimonial pronunciava o seu nome e os comentários e as risadinhas se iniciavam, Ctrl Z neles e o silêncio reinava, só ficava a admiração da plateia.
Na última entrega de prêmios da noite, na categoria mais importante que ele ganharia pela segunda vez consecutiva, o cerimonial o chamou e disse que ia quebrar o protocolo. Aí ele não aguentou e usou as teclas Control Z despachando o cara não se sabe para onde. Ninguém mais o viu depois daquela noite. GB nem precisou usar as teclas para desfazer as piadinhas, as risadinhas e os comentários. Todos se levantaram e o aplaudiram por quase meio hora. A platéia também não estava mais aguentando aquele mala do cerimonial.
Segunda-feira de ressaca merecida após um fim de semana de glórias para Gigabyte, mas mesmo assim ele trabalhava em seu estúdio. Tinha trabalhos urgentes a fazer.
Trabalhava tranquilamente, apesar de um pouco sonolento. Súbito, começou a sentir uma comichão estranha em suas partes baixas. Seu pintinho, outrora murchinho, começou a ficar mais largo e foi aos poucos adquirindo um novo formato. Em poucos segundos já era um outro bichinho. Tinha virado um mouse.
Seus pés começaram a se afinar e a se alongar. Ficaram quadrados e com mais ou menos dois palmos na parte da frente e um palmo na de trás. Suas pernas ficaram adormecidas, seu bumbum foi-se achatando e aumentando de tamanho. Ficou quadrado. Cada uma de suas pernas, já bastante modificadas, foi para um lado do quadrado e apareceu ali, embaixo dele, uma mesa de computador, já com o mouse em cima.
A transformação agora se processava em seu tronco, que se dividiu em dois, surgindo em seu lugar uma CPU, com nobreak e tudo. Seu cérebro desceu e foi compor a CPU.
Seus braços e suas mãos viraram duas caixinhas de som. Elas eram imprescindíveis. Usava-as muito para as suas edições.
A transformação acontecia de forma tão rápida que GB nem teve tempo de gritar ou protestar ou mesmo usar o teclado de seu cérebro. Na verdade nem sabia se o usaria para aquela ocasião. Mesmo tendo medo, estava gostando daquilo.
Seus dentes e seu lábio inferiores começaram a se alongar. Foram aumentando de tamanho. Seu queixo foi-se comprimindo e tudo foi se transformando num teclado. Ele despencou na mesa e GB ficou literalmente de queixo caído. Notou que só havia duas teclas: Ctrl Z.
Seus olhos foram se dilatando e logo se emendaram um no outro. Sua cabeça foi se achatando e ele conseguiu senti-la se contraindo. Seu rosto ficou quadrado e sua cabeça ficou bem fininha. Ela era bem grande e o conjunto da obra foi um monitor LCD de 21 polegadas de última geração.
Estava tudo consumado.
Antes que pudesse instalar em si mesmo programas para falar e ouvir – os sentimentos ainda estavam com ele – veio o seu filho pequeno e ficou olhando curiosamente aquele computador magnífico. Um grito surdo perspassou toda a extensão da sala. Faltou-lhe garganta para ser ouvido. Assustou-se, pois seu filho olhava fixamente para aquele teclado estranho e ele previu o futuro.
O menino, com dois dedinhos apenas, teclou Control Z e GB viu um túnel escuro, com uma luzinha ao fundo e ela se aproximava depressa.
GB desapareceu.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Paraíso “perdido”

Paraíso “perdido”
Sidnei Alves da Rocha
“Há histórias que são tão verdadeiras que às vezes parecem que são inventadas”. Muitas delas ficam enclausuradas em nós por muito tempo. Querem sair. Esperam uma brecha, uma oportunidade para flanarem por aí, a “voar fora da asa”. Uma história só tem sentido se ganhar livremente a vastidão, levando-se em conta que “não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou”.
Num momento de cochilo, esta história adormecida em mim há muito tempo começou bobinando cá dentro e escapou e o poder da história tomou todo o meu ser e a caneta correu livremente sobre a folha de papel e saiu esta narrativa.
O moço chamava-se Francisco e, após ter sido aprovado em um concurso do IBGE foi escalado para recensear uma aldeia da FUNAI com cerca de 2.000 índios.
Missão difícil e demorada. Levaria alguns meses para concluir o trabalho.
Os indígenas não falavam português (nem ele Tupi-guarani), à exceção de um jovem que tinha sido alfabetizado em uma escola dos brancos e que foi convidado para ser o seu guia, tradutor e porta-voz.
O recenseador fazia as perguntas e o índio as traduzia para os demais na Língua Tupi.
A primeira semana foi difícil.
Aquela gente estranha parecia inculta, atrasada e sem nada a lhe oferecer.
Sentiu-se superior.
Ele sim tinha algo a ensinar. Era estudado. Já tinha Segundo Grau completo.
O seu guia, coitado, estudara somente até a 4ª Série primária.
Uma índia iria cozinhar para ele.
Para a primeira refeição ele havia levado arroz, feijão e carne seca (coincidentemente, para os demais dias também).
Ela cozinhou o feijão e fez o arroz com carne seca. Só havia um porém: ninguém ensinou a ela como preparar a carne seca, ela não sabia e a carne não fora fervida nem posta de molho para extrair o excesso de sal.
A comida ficou horrível.
Ele lhe ensinou como proceder e nos outros dias tudo correu bem com a alimentação.
Após um dia inteiro de trabalhos complicados, Francisco e o índio se sentaram em volta da fogueira para conversar.
O diálogo fluiu amigavelmente e, para a grande surpresa de Francisco, aqueles indígenas tinham mais a lhe ensinar do que o contrário.
Em certa ocasião, o índio perguntou-lhe sobre a terra, o sol, a lua e as estrelas.
E Francisco contou-lhe tudo o que sabia: que a terra era redonda e que girava em torno do sol etc., etc., etc. Quando desenhou no chão o sistema solar e, em torno do globo terrestre uma porção de homenzinhos a se equilibrar, o índio se assustou e perguntou-lhe por que aqueles homens estavam ali, fora da terra. Na sua imaginação (até a 4ª Série não se aprendia isso) as pessoas e tudo o que existe ficavam dentro da terra e não sobre ela como demonstrava o desenho e, além do mais, para o índio, ela não era redonda, não podia ser redonda.
Depois das devidas explicações, o índio perguntou a Francisco por que as pessoas não caíam e ele lhe explicou sobre a Lei da Gravidade e toda essa história de força de atração. Falou sobre Isaac Newton, sobre a maçã, sobre o bicho da maçã...
No decorrer do tempo, o índio também ia lhe ensinando muitas coisas e Francisco compreendeu que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios” e descobriu ainda que “No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira”. Percebeu então que “o verbo tem que pegar delírio” e Francisco confessou seus “bestamentos” e concluiu que só sabia “o nada aumentado”. Ficou confuso e se perguntou: “Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude?” Vasculhou em seu interior e a pergunta ficou sem resposta.
Em outra bela tarde, Francisco e seu índio conversavam sobre religião e o índio quis saber sobre o Deus dos brancos.
O recenseador lhe explicou tudo o que sabia sobre o Onipotente e o menino Jesus. Em seguida perguntou-lhe sobre o Deus dos indígenas e ele lhe explicou que o seu Deus era um menino loiro, com cabelos da cor do fogo e que morava na outra margem do rio, numa imensa e conservada floresta. Quando um índio morria, seu espírito ia até a margem do rio e o menino loiro, seu Deus, atravessava-o caminhando sobre suas águas, pegava o espírito no colo e o transportava até a outra margem do rio e se embrenhavam na mata virgem. Lá, o espírito do índio se juntava a inúmeros outros espíritos e viveriam neste paraíso para todo o sempre, caçando, pescando e se alimentando também das raízes e frutos abundantes que a floresta lhes fornecia.
E Francisco foi tomado pelo encantamento, concluiu seu trabalho e pelo resto de sua vida carregou os ensinamentos, a pureza e a cultura daquela gente.
“E ele se estimou”.
PS.: As frases destacadas foram extraídas de poesias do grande poeta matogrossense Manoel de Barros.

Possibilidades

Possibilidades
Sidnei Alves da Rocha
Quisera eu ter o dom dos grandes escritores para produzir belas histórias.
Poderia transformar os fatos mais banais em aventuras e desventuras fabulosas.
Transformaria qualquer pessoa em grande celebridade e tornaria importante o mais comum dos seres humanos utilizando o poder incontestável da palavra.
Olharia pelas ruas a procura de personagens autênticos e brilhantes pois, por trás de cada rosto anônimo na multidão, existem histórias belas ou tristes que merecem ser contadas.
Se tivesse este dom, contaria a história de um mendigo de olhar profundo e triste que passa seus dias vagando pelas ruas desde o dia em que sua casa, onde morava com sua filhinha, pegou fogo.
Narraria o fato dizendo que ele estava no trabalho e que, quando chegou, a sua casa já ardia em chamas. Desesperado, quis entrar, mas disseram-lhe que sua filha já tinha sido levada pelo Conselho Tutelar para a Casa de Apoio. Nove anos tinha a sua menininha.
Diria que esta foi a sua segunda grande dor. A primeira e insuperável foi quando sua adorada esposa faleceu. A filha contava dois anos de idade na época. Desde então cuidava sozinho dela, sempre na mesma casa, sendo um pai zeloso e presente, sem jamais lamentar sua vida ou verter uma lágrima sequer pelas desgraças sofridas.
Diria ainda que, junto com esta sua segunda grande perda veio, de mãos dadas com ela, a terceira perda considerável de sua vida. O emprego de tantos anos lhe fora arrancado sem mais nem menos. Alegaram contenção de despesas, mas em seu lugar já estava trabalhando um vigoroso jovem e, por isso, passou em um bar e, pela primeira vez na vida encheu a cara de cachaça para afogar as mágoas acumuladas ao longo daqueles anos todos. Chegando a casa mais tarde que de costume encontrou a cena lamentável. Culpou-se. Chorou. Secou as lágrimas e foi em busca da filha. Chegando bêbado à Casa de Apoio, disseram-lhe que ele não podia ficar com a filha, que era alcoólatra e irresponsável. Então o homem contou a sua história e isto piorou a situação: bêbado, sozinho, sem casa e desempregado.
– Não dá – disseram-lhe – sua filha irá para a adoção.
O homem chorou mais uma vez e ganhou as ruas.
Afirmaria que o mendigo ficou nelas por longos 15 anos sem saber notícias de sua filha. Nunca mais bebeu, nem sorriu, nem chorou. O que ainda o mantinha vivo era a esperança de um dia encontrar sua filha, mas às vezes achava difícil, ou quase impossível numa cidade tão grande e com tanta gente indo e vindo.
Anunciaria que numa tarde parou uma Van em uma esquina e desceu dela uma bela moça que oferecia sopa para os moradores de rua e olhava atentamente para cada um deles. A moça o olhou de longe e sorriu. Depois de longos anos, teve vontade de sorrir também e correspondeu ao sorriso da moça. Ela foi se aproximando, se aproximando...
Concluiria dizendo que, ao se olharem nos olhos os dois choravam e riam ao mesmo tempo e se abraçaram longamente. Enfim, pai e filha tinham se reencontrado. Ela vivera até os 20 anos num abrigo e de lá só saiu para trabalhar. Conheceu um bom moço em seu trabalho e se casaram. Com a ajuda de amigos e da empresa, começou a distribuir sopas no intuito de localizar o pai. Mesmo encontrando-o, nunca mais parou de ajudar os mendigos. Ela levou o pai para casa e passaram a compartilhar muitas alegrias e tristeza, mas enfim, felizes por estarem novamente juntos.
Mas meu tempo se esgotou. Volto para o meu escritório e vou fazer as minhas escritas corriqueiras. Vou produzir o meu ofício, com seu fechamento manjado, redundante e antigo, transcrever minha carta comercial e digitar meu requerimento, tudo copiado, à exceção de algumas palavras que troco para não ser tão repetitivo.
E inevitavelmente caio na real.
Sem mais para o momento...

Os pequenos ladrões e o mergulho da santa

Os pequenos ladrões e o mergulho da santa
Sidnei Alves da Rocha
Somos de uma família de dez irmãos. Família numerosa, como se vê.
Assim sendo, cada um tem suas características, apesar de virem do mesmo pai e da mesma mãe. Cada um de nós é único, incomparável na sua incompletude.
Um ou outro gostava de cigarros; um ou outro gostava de uma cachacinha; um ou outro adorava política (a partidária); um ou outro gostava de Pablo Neruda; um ou outro amava Chico e Caetano; um ou outro tinha apreço por pequenos furtos, alguns adoravam roubar melancia, outros; milho.
Os quatro mais novos – minhas três irmãs e eu – encaixávamos na última categoria, mas esta arte não podia ser praticada a qualquer hora, em qualquer dia. Ela carecia de um momento especial.
Por que roubar milho e não colhê-lo na nossa própria roça? Simples. Porque a maior parte de nossas terras era formada por pastagens e uns dois alqueires que sobravam eram arrendados e os arrendatários só plantavam algodão.
Quem favorecia nossa predisposição para este tipo de furto, em especial, era o nosso vizinho de sítio, que sempre plantava milho nas terras dele, elas não tinham pastagens e eram grandes como as nossas.
Éramos praticamente uma quadrilha (quadrilha que se preze tem quatro componentes), um grupo composto por crianças e adolescentes.
Este grupo só enfrentava um problema: o medo.
Nosso pensamento era sempre o de que alguém nos apanharia com a boca na botija (ou com as mãos no milho, como queiram). Por isso aguardávamos pacientemente a vinda da chuva. Isso favorecia nossas ações. No nosso pensamento, ninguém além de nós teria coragem para sair na chuva para roubar ou vigiar o milho.
Quando o tempo de chuva começava a se formar, apanhávamos os sacos e ficávamos de prontidão para o grande momento que estava por vir.
Tínhamos que ser ágeis, pois às vezes a chuva era bastante rápida e a plantação de milho, apesar de o sítio do nosso vizinho ser contíguo ao nosso, ficava a quase dois quilômetros de nossa casa.
Para a nossa alegria, sempre chovia e sempre tinha milho e com isso nós nos deliciávamos com as pamonhas, os curais, os bolos e as espigas de milho assadas e cozidas que preparávamos.
Era uma parceria e tanto: nosso vizinho plantava e nós ajudávamos a colher.
Certa feita, lembro-me de que o milharal estava lindo, as espigas estavam convidativas e o céu estava azul, sem uma nuvem sequer para termos esperanças de uma farta colheita.
Minha mãe sempre brigava com a gente. Mas no fundo acho que ela gostava dessas nossas pequenas travessuras. Talvez, vendo o milho no ponto de ser colhido, perguntava-se: “Ué, hoje os meninos não vão?”
A ansiedade bateu. A vontade de fazer aqueles pratos deliciosos era incontrolável e o céu continuava azul e sem uma nuvem sequer.
Chegada a hora do almoço, comemos meio que contrariados pela falta de algum ingrediente em nossa refeição que ainda estava na roça do vizinho, à nossa espera e que tínhamos a certeza de que viria para nós mais cedo ou mais tarde.
Por volta das 13 horas o céu já não estava totalmente azul e já podíamos visualizar algumas nuvens de chuva se formando.
Animamo-nos e já formos preparar os sacos para a colheita.
Não demorou muito e a chuva caiu torrencialmente. Apanhamos os sacos e saímos em disparada para o milharal que nos aguardava também com ansiedade.
Colhemos o milho e o ensacamos.
Cada um pôs seu saco nas costas e saímos de lá às pressas (mesmo com chuva ainda tínhamos um pouquinho de medo de sermos apanhados).
Quando íamos atravessar a cerca de volta para o nosso sítio, nós quatro tivemos a absoluta certeza de que um raio caiu sobre ela e correu por seus fios de arame farpado.
Olhamo-nos por alguns segundos e minha irmã mais velha exclamou, com as duas mãos na cabeça:
– Meu Deus do Céu! A santinha!
– Que santinha? – perguntamos.
– A santinha que a mãe ganhou da vó. Eu a mergulhei na água e me esqueci de tirar – respondeu ela em pânico.
– Jesus! – exclamamos os três em coro.
Há um tempo minha mãe ganhou da minha avó uma imagem de uma santa de mais ou menos 10 cm. Segundo consta, ela era meio milagreira, pois fazia chover.
Quando o tempo estava muito seco, minha avó punha a imagem de cabeça para baixo dentro de um copo com água e, dizem que dava certo, que chovia mesmo.
Acreditamos então que quem fizera chover nesse dia fora a santa.
Enchemo-nos de coragem, atravessamos a cerca e fomos tirá-la da água.
Seria possível uma santa ajudar aqueles ladrõezinhos?
Nós achávamos que sim, afinal, que santo se furtaria em ajudar aqueles adoráveis gatunos?
Chegamos em casa com os sacos carregados nas costas. Minha irmã mais do que depressa entrou, tirou a santa da água, enxugou-a e a pôs no seu altarzinho.
Minha mãe ralhou um pouquinho por causa do roubo do milho, mas não contamos a ela sobre o mergulho da santa.
Parou de chover.
Descascamos as espigas de milho e fomos fazer os pratos deliciosos de que tanto gostávamos.

Minha primeira vez

Minha primeira vez
Sidnei Alves da Rocha
Meu cachorro é muito, muito inteligente.
Certa vez ele me pediu papel e caneta e disse-me que precisava escrever as suas impressões, as suas memórias, os seus sentimentos...
Não queria falar com medo de se esquecer de coisas importantes. Salientou que o melhor mesmo era escrever. Teria tempo para refletir e diria tudo aquilo que desejava dizer.
Uma semana depois encontramos, sem querer, no meio de seus pertences um texto que reproduzimos e agora publicamos para que todos conheçam sua sagacidade.
Ei-lo:
“Meu nome é Jack.
Sou da raça poodle.
Fui trazido para esta casa há oito anos, quando fui adotado por este casal maravilhoso que me tratou e me trata como um filho.
Lembro-me de que quando cheguei, eu era um montinho de nada, puro pelo.
Minha antiga dona disse para eles que eu iria chorar muito na primeira noite.
Quem ela pensa que é para falar assim? Por acaso ela entende de psicologia canina?
Só para contrariar a megera, não chorei nadinha.
Me acostumaram mal e eu abusei.
Não comia e nem como sozinho (“...a solidão é fera, a solidão devora; é amiga das horas prima-irmã do tempo e faz nossos relógios caminharem lentos...”). Meu papai sempre tem de estar comigo para eu poder comer. Quando eu queria aprontar, fazia greve de fome e ele tinha de me dar ração na boca, uma por uma, senão eu não me alimentava e, para ele me conquistar novamente, demoraaaaava.
Fui mimado. Sou cachorro mimado, e daí?
O dia mais feliz da minha vida foi quando eles trouxeram para mim uma cachorrinha para me desvirginar. Ela também era poodle.
A princípio não gostei muito dela.
Confesso ser um pouco racista. Eu sou todo pretinho, entende? Ela era toda branquinha.
Mas logo me afeiçoei a ela e começamos a conversar.
Ficamos meio constrangidos porque os dois (papai e mamãe) ficaram em cima da gente, acompanhando cada passo que dávamos.
Minha mamãe saiu logo para os seus afazeres e meu papai ficou nos observando, nos cuidando, seguindo todos os nossos passos e ações. Nem me permitiu fazer as preliminares. Ele estava mais ansioso do que eu.
Sou bem instruído e esta atitude de papai me lembrou aqueles pais antigos lá da época dos coronéis que levavam seus filhos adolescentes para a zona a fim de iniciá-los sexualmente.
Estávamos num papo legal e ele ficou ali, na pressão.
Puxa, na pressão eu não funciono!
E ele me botou em cima dela.
Eu, para não contrariá-lo, fiz todos os movimentos. Nunca tinha feito isso, mas já lera a respeito.
Só que ele percebeu que não tinha rolado e me disse uma coisa que me magoou muito: 
– Vai, Jack, acerte em qualquer buraco!
Fiquei com a cara no chão.
Logo eu, um gentleman, para os leigos, um tremendo cavalheiro.
Ainda bem que a gata... (Argh, eu detesto gatas) a cachorrinha estava de costas para mim e não a olhei nos olhos nesta hora.
Eu estava bastante constrangido. Não deu. Aí eu brochei.
Ainda bem que ele desistiu e foi fazer outras coisas.
Pedi desculpas a ela e reiniciamos nosso relacionamento.
Cara, foi incrível.
Era virgem, porém não era otário.
Ela era linda, mas eu mal a conhecia.
Não queria ter o meu nome sujo na praça nem ser levado ao Fórum para assumir a paternidade de possíveis filhotes.
Peguei um preservativo de cachorro e foi ali, debaixo da mangueira que aconteceu o amor.
Foi lindo, foi maravilhoso, foi indescritível. Me veio à cabeça uma antiga canção que ouvi no rádio e que traduzia perfeitamente bem aquele momento “...depois da loucura total sua respiração pouco a pouco se acalma e eu te peço perdão, violento demais, quase que te arranhei...”
Deitamo-nos abraçados (eu a abracei por trás) e adormecemos.
Para despistar os dois bocós, até hoje eu não ergo a patinha para fazer xixi.
Eles ainda acreditam que sou virgem.”

A videoconferência

A videoconferência

“...Eu não sei
nada sobre as grandes coisas do mundo, mas
sobre as pequenas eu sei menos.”
Manoel de Barros

Minha esposa e eu dormíamos como dois anjinhos. Ela, de barriga para cima e eu, de lado e dando-lhe as costas.
Por volta da meia-noite acordei ouvindo vozes que me pareceram muito distantes.
Virei-me de barriga para cima e as vozes cessaram.
Fiquei quieto. Mal respirava.
As vozes recomeçaram.
Eu já estava bem acordado. Atinei os sentidos e apurei bem os ouvidos para distinguir de onde vinha aquela discussão.
Percebi que o som não vinha de fora da nossa casa. Mas como, se na casa só estávamos nós dois e o nosso cachorrinho Jack? (este, apesar de ser bem inteligente, que eu saiba não fala).
Busquei na memória o passo a passo antes de nos deitarmos. Tinha a absoluta certeza de que a televisão e o rádio estavam desligados.
– Não pode ser! – exclamei baixinho.
A realidade me veio pouco a pouco, em gotas, mas me custava acreditar ser aquilo possível de acontecer.
Apurei mais ainda os ouvidos e fui tomado pelo encantamento daquele som que, agora sim podia distinguir de onde vinha. Só restava saber por que discutiam tanto.
Olhei para a minha barriga e em seguida para a barriga da minha esposa que dormia profundamente ao meu lado.
Não podia ver seus interiores, mas era de lá que aquele vozerio vinha, disso eu já tinha absoluta certeza.
Pasmado, descobri que nossas solitárias e nossos vermes haviam organizado uma videoconferência para discutirem e protestarem contra alguma coisa. Não sabia ainda o que ou contra o quê.
A solitária da minha esposa, uma espécie de Che Guevara intestinal, conhecida pelo nome de Tênia Solium, organizara o evento e liderava aquela discussão. Aliás, até os vermes dela (da minha esposa) eram metidos a besta e a querer mandar nos meus. O incrível é que eles herdaram da minha amada a ânsia pela ordem, a vontade de mandar sempre, um tipo de reprodução, em nossas barrigas, do que acontece em nossa casa. Os meus até que tentaram liderar, mas foram massacrados pelos dela e ficaram mesmo como coadjuvantes na história e eram liderados pela minha solitária Taenia Sós.
Tênia discursava naquele momento:
– Companheiros, há anos habitamos estes corpos. Há anos somos fiéis companheiros desses dois. Há muito nos acostumaram com a deliciosa e nutritiva carne vermelha, com a qual nos deliciávamos.
Observou o efeito que estas palavras produziram na plateia e, logo em seguida, concluiu:
– Agora, por uma questão de saúde, dizem eles, estão mudando os seus hábitos alimentares. Estão na base do suquinho verde de manhã, sopas, arroz, feijão e muitas saladas e legumes, além de vitaminas com muitas frutas, leite e aveia. De quando em vez um peitinho de frango ou um peixinho como mistura.
– Assim não dá – bradou Taenia Sós – não podemos mais aceitar a refeição que nos dão. Abaixo o suco verde!
Alguns poucos, em coro, repetiram:
– Abaixo o suco verde! Abaixo o suco verde!
Terminou sua fala sugerindo:
– Vamos atacar alguns órgãos vitais destes dois. Vamos radicalizar.
Fui tomado pelo pânico e comecei a temer pela nossa saúde, mas Tênia Solium interferiu:
– Senhores, não podemos ser tão radicais. Se fizermos isso virão médicos e poderão descobrir que os causadores de tudo somos nós.
Nesta altura eu já estava torcendo pela Tênia e nutria grande simpatia por ela.
Tênia, sendo bastante enfática, disse:
– Com esta atitude, nós mesmos seremos prejudicados. Não se esqueçam de que há pouco tempo nossa hospedeira fez aquele exame do ferrinho que indicou a presença de vermes e receitaram para ela leite de mamão que exterminou com boa parte da nossa colônia. Estamos começando a nos recuperar agora.
– Disso eu me lembro bem – interrompeu Taenia Sós. Todo dia levantávamos de madrugada para ir roubá-lo do mamão da vizinha. Esta tarefa coube ao meu hospedeiro e eu não pude fazer nada para impedi-lo. Oito dias seguidos, nove gotinhas extraídas e bebidas todo santo dia.
– Que tal nos hospedarmos no corpo do Jack? – sugeriu um verme da plateia.
– Tá louco? – respondeu Taenia Sós – o cachorro só tem pelo. Se coubéssemos todos nós nele seria uma boa. Estes dois vivem fazendo as suas vontades. É só ele fazer uma grevinha que lhe dão tudo. Daríamos uma pressão no bichinho, ele bateria as patinhas tipo “não quero ração! não quero ração!” e teriam de lhe dar carne. Sempre fazem suas vontades estes bocós.
A ideia foi descartada. O Jackinho já era habitado e a transferência das nossas solitárias e dos nossos vermes seria muito complicada e cara. Melhor mesmo é salvar o mundinho onde se vive do que abandoná-lo.
Por um bom tempo o silêncio foi quase absoluto, todos refletindo sobre as últimas falas, à exceção de algumas crianças-vermes que haviam sido levadas por suas mães e que não paravam de conversar, de brincar e de atazanar os adultos que queriam prestar atenção, igualzinho àquilo que acontece nos eventos que envolvem professores.
Tênia quebrou o quase silêncio:
– Precisamos ter consciência. Nosso meio ambiente precisa ser preservado. Precisamos conservar nossa fauna e nossa flora intestinal. A nossa sobrevivência depende da boa saúde da nossa casa. Se ela adoecer, teremos sérios problemas, como superaquecimento intestinal e, quiçá, global, elevação das toxinas e diminuição de líquidos.
Apresentaram então duas propostas para fechar a questão: uma era ser radical, botar uma pressão e a outra era se adaptar, aceitar a comida que tinham com o intuito de salvar as próprias peles. Fizeram uma votação e Taenia Sós foi a única que votou na primeira proposta, defendendo-a com unhas e dentes, ou com aquilo que as solitárias porventura tenham e ficou mais solitária do que nunca.
Eu não estava mais conseguindo manter meus olhos abertos. O sono chegou para valer, mas estava agora um pouco mais aliviado com a esmagadora vitória da proposta defendida por Tênia Solium.
Após anunciar o resultado, Tênia concluiu em bom espanhol:
– Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!
E deu por encerrada a sessão.
Eu não aguentava mais e pequei no sono.