A Cigarra, a Formiga e a Aleluia
Sidnei Alves da Rocha
Sidnei Alves da Rocha
No verão, período de vacas gordas, a Cigarra e a Formiga trabalhavam, trabalhavam, trabalhavam...
A Formiga, no entanto, pensava no futuro e economizava cerca de 80% daquilo tudo que ganhava como recompensa do seu suor. Já a Cigarra, dissimulada como ela só, quanta displicência e quanto descaso com o futuro. Gastava tudo o que recebia. Esbanjava à vontade. Colocava a culpa na prestação do carro e na mensalidade do curso superior feito por ela. Tudo mentira. Ela vivia fazendo festas e cantando. Vivia de carro para cima e para baixo. Não estava nem aí para o inverno vindouro.
Suas festas eram regadas a comida e a bebida de excelente qualidade (sem falar na quantidade) e cada convidado que ia embora levava alguma coisa: um prato disso, um prato daquilo. Ela dizia não gostar de comida amanhecida. Comida requentada lhe dava alergia, náusea.
Acabaram-se as prestações do carro e acabou-se o curso superior, mas mesmo assim a Cigarra não economizava. Daí passou a esbanjar mais. Claro, sobrava mais dinheiro.
Adorava explorar a Formiga, coitadinha, mas pelo menos ela era sempre convidada para os seus banquetes e tudo aquilo que levava para casa depois da festa acabava minimizando um pouco a exploração.
Apesar de as festas, os banquetes, os passeios de carro serem bancados pelo Cigarro, que vivia maritalmente com a Cigarra, a Formiga tinha de bancar metade das festas. Foi então que o Cigarro foi esfriando, esfriando, até se apagar de vez e sumir de casa, deixando a Cigarra sozinha com a Cigarrinha.
Chegou o inverno. A crise econômica veio junto. E o tempo das vacas magras se instaurou, fincou pé e não arredava de jeito nenhum e a Cigarra sentiu na pele a sua postura desregrada.
Começou a explorar a Formiga ainda mais. Alguém tinha de pagar por seus erros. Quando lhe dava carona, cobrava gota por gota do combustível gasto (muitas vezes só lhe oferecia carona para obter recursos). As festas se escassearam e nada, absolutamente nada mais saía daquela casa. Nada de comida. Nada de bebida, nada de nada... A Cigarra teve de mudar seus hábitos. A crise a fez adorar comida requentada.
A Formiga estava bem. Economizara para o inverno e tinha reservas. Ela tinha bom coração, mas como ajudar a Cigarra se mesmo com aquela lição ela não aprendia? Continuava comprando roupas, indo a bailes e a festas, comprando bons presentes de aniversário para todo mundo, viajando. Só a Formiga, pobrezinha, não ganhou presente bom. Em seu aniversário a Cigarra lhe deu um presentinho de um e noventa e nove. Era um golfinho que deveria ficar suspenso no ar, com cinco cordinhas amarradas nele e mais cinco ferrinhos nas pontas das cordinhas. Os ferrinhos, com o vento, batiam um no outro e faziam um barulhinho até legal, só que bem baixinho devido ao tamanho reduzido da peça.
A Cigarra era incorrigível. Tinha deixado de esbanjar com comida e bebida, mas os outros gastos costumeiros continuavam, alguns até se multiplicavam dia após dia.
Em sua última viagem prevista para durar 10 dias (estendida para 20), a Cigarra ganhou a estrada e deixou em sua geladeira algumas coisas, mas as melhores, segundo ela era um pedaço de carne bovina (Cigarra é um bicho extremamente carnívoro) e um galãozinho de iogurte de 900 ml. Deixou também as chaves de sua casa com a Formiga para que esta fosse lá de vez em quando para ver como iam as coisas e abrir as janelas para entrar sol.
Quando a Cigarra retornou da viagem, vistoriou a casa inteira e começou a acusar a Formiga de ter levado embora o seu pedaço de carne e de ter ingerido o seu iogurte que haviam desaparecido de sua geladeira. Não tinha quem a fizesse mudar de ideia.
A Formiga, claro, defendeu-se e jurou de mãos postas que não tinha cometido tal delito. Alegou inocência. Mas não tinha jeito. A Cigarra não se convencia.
A Formiga acusou-a de sofrer de amnésia. Às vezes ela acusava a Formiga de ter pegado alguma coisa sua e quando ia procurá-la direito, tinha-a guardado em outro lugar. Tudo bem que a Formiga tinha antecedentes, pois já lhe furtara um peixe de seu congelador, mas ela fez isso como uma boa ação. O peixe estava para se estragar e era um peixe grande, bonito, saboroso.
A Cigarra ficou tão obcecada em provar que a Formiga tinha culpa no cartório, querendo pegá-la com a boca na botija de qualquer maneira, que sonhou e no sonho a Cigarra pressionava a Formiga de todo jeito (só faltava tortura física, porque a psicológica já estava sendo exercida). Mas isso não estava dando certo. A Formiga parecia inocente mesmo.
A Formiga, com sua carinha de santa (só lhe faltava aureola), já estava quase convencendo a Cigarra de que aquilo tudo não passava de mais um de seus ataques de amnésia, mas antes que isso acontecesse, no sonho apareceu a Aleluia, uma vizinha fofoqueira da Cigarra que lhe disse que viu alguém entrando na casa, porém não se preocupou porque o visitante estava com as chaves. O invasor, segundo ela, tinha as mesmas fisionomias da Formiga. Ficou atenta e ouviu um bip intermitente, um barulhinho chato e contínuo que ia aumentando aos poucos. Pensou em deixar para lá, mas preocupou-se com a Cigarra e resolveu dar uma espiadinha. Chegou mais perto e viu a cena. Lá estava alguém que, da posição em que estava, não lhe era permitido ver direito, mas que se parecia, como dissera antes, muito com a Formiga. Porta da geladeira aberta, cadeira próxima à porta, lá estava o invasor sentado com os pés dentro da geladeira (não façam isso em casa, é ecologicamente incorreto), sentindo todo o frescor que emanava de seu interior e se deliciava muito com o galãozinho de iogurte todo suadinho de tão gelado, bebido diretamente no gargalo. Com o calor, vez em quando o passava pelo rosto para se refrescar mais e fechava os olhos para se deliciar, ao mesmo tempo em que abria a boca e soltava um “ah” de satisfação. Dizia a Aleluia fofoqueira que o danado do invasor se deliciava tanto com aquilo que nem se importava com o bip contínuo que a geladeira insistentemente fazia, sinal de alerta que emitia quando sua porta ficava aberta por muito tempo. Quando saiu, comadre (a fofoqueira a chamava assim), ainda levou um embrulho até bem grandinho que retirou do refrigerador.
A Formiga ouvia toda a história bem desconfiada e ante o ódio que fazia brilhar os olhos da Cigarra, foi saindo de fininho.
Quando a Cigarra se virou para cobrar as devidas explicações da Formiga, só enxergou a poeirinha da sua motocicleta sumindo no horizonte.
A Cigarra acordou assustada, banhada em suor e gritando:
– Eu sabiiiiiiiiiiiiiiiia!