Flashes na noite
Sidnei Alves da Rocha
Após um sábado de exaustivos trabalhos, o homenzinho dormia o sono dos justos.
Pegou no sono rápido. Estava demasiadamente cansado, pois passara o dia capinando e catando latinhas do nascer ao pôr do sol.
Súbito, gritos que lhe pareciam vir de muito longe o despertaram.
Não vinham de longe. Estavam bem perto, tão perto que ele conseguia sentir o hálito quente que vinha da boca daquele homem, bem ao lado de sua cama.
– Pegue suas coisas! – disse o homem – o barracão está pegando fogo!
O fogo mal havia começado e o povo da cidade já estava todo reunido para vê-lo.
Cada um procurou o melhor lugar, com o melhor ângulo para acompanhar o espetáculo.
– Olha a pipoca! Olha a pipoca! – um sujeito já gritava em meio à multidão que se aglomerava.
As câmeras da TV já filmavam tudo o que acontecia ali, passo a passo e havia sorveteiros por todos os lados. Naquela quentura, um sorvetinho caía muito bem (sem querer parodiar o “Faroeste caboclo”, do Renato Russo, mas já parodiando).
As fotos se sucediam numa sequencia louca de flashes que algumas vezes se confundiam com as chamas.
Com a passividade dos que não têm eira nem beira, uma vez que aquele quartinho não era seu, ele fazia parte do velho barracão de madeira que pertencia à prefeitura e agora servia de almoxarifado e que gentilmente lhe fora cedido para os seus pernoites, o homenzinho aos poucos foi se dando conta da situação.
Podia ouvir os estalos do fogo na madeira.
Podia sentir a quentura do fogo que já os estava cercando.
Podia perceber o desespero do homem ao seu lado.
Sentado à beira da cama, Tiozinho – era esse o nome que lhe deram – calmamente começou a dobrar as suas poucas roupas e a colocá-las delicadamente em uma pequena caixa que lhe servia de guarda-roupa.
Parecia não se importar.
Parecia não sentir calor.
Parecia não ter medo.
Mas o homem ao lado da sua cama tinha medo, aliás, estava desesperado e não sabia o que fazer.
Um estalo mais forte na madeira o obrigou a tomar uma atitude. O fogo já os cercava por completo e o homem pegou Tiozinho pelos fundos da calça e pela gola da camisa e o arremessou porta afora.
Pôs o restante das roupas na caixa e a arremessou também.
– Minha bicicleta! – exclamou Tiozinho.
A bicicleta voou pela janela.
– Pamonha! Pamonha! Pamonha! – desceu alguém berrando pela avenida.
– Aí já é demais – pensaram alguns.
Ninguém queria ficar de fora do espetáculo.
– Eu vi quando o fogo começou. Estava passando por aqui por volta das 7 da noite e só havia uma fumacinha saindo pelo canto superior do barracão – dizia um.
– Tenho certeza – jurava outro – quando passei, e isso era umas 7 e meia da noite, vi algumas faíscas saindo da fiação. Achei que era normal.
Um terceiro, convicto, salientou:
– Oito e meia começou. Eu vinha da missa. Como ia mentir?
Mas uma quarta pessoa superou as expectativas ao comentar:
– É engraçado como as coisas acontecem. Quando eu ia para o sítio e passei aqui em frente por voltas das 10 horas da manhã, olhei para o barracão e pensei “nossa, ele é tão velho. É até perigoso deixá-lo assim, sozinho” e fui para o sítio tão preocupado.
Tiozinho procurou desesperadamente por alguma coisa no meio de seus pertences, mas nada do que procurava encontrou.
– Minhas latinhas! – exclamou e em seguida entrou no quarto em chamas.
Cobrindo o rosto com as mãos para tentar protegê-lo da quentura e das faíscas, Tiozinho localizou o saco com as latinhas em um canto e conseguiu chegar até ele, recuperando-o em seguida e saindo dali às pressas.
Tiozinho continuou mexendo em suas coisas e disse ao homem que sua latinha cheia de moedinhas não estava com ele. Este era o único pertence do homenzinho que tinha algum valor.
– Preciso recuperar ela – argumentou e se moveu em direção ao barracão em chamas.
O homem o segurou com força e disse que seria impossível entrar lá.
Tiozinho, consternado, aceitou o argumento e ficou cabisbaixo, postado no meio do pátio.
Ficou só.
Todos os outros estavam fazendo alguma coisa, mas ele ficou ali, imóvel, pensando na vida.
No meio da rua um sujeito de terno e com um livro grosso e de capa escura debaixo do braço começou o seu discurso, já com uma pequena multidão a sua volta:
– Irmãos, eu vi quando um raio desceu do céu e atingiu o velho barracão. É um sinal dos céus. É o fim dos tempos. É o apocalipse...
Surgiu no canteiro central uma barraca com fachada e tudo na qual estava escrito: “Fotografia em 1 minuto”.
O homem da barraca começou a gritar:
– Compre aqui a sua recordação do incêndio. Temos fotografias para todos os gostos. São fotos pequenas, médias e grandes.
Do lado da barraca havia um panfleto com os preços.
A última parede do barracão ruiu.
O homem da fotografia anunciou:
– Não percam! Adquira hoje mesmo e só aqui a sequencia completa do incêndio, cômodo a cômodo, num álbum exclusivo para colecionadores.
Começou a chover. Era, a princípio, uma chuva bem fina.
As pessoas foram se retirando aos poucos e em alguns minutos não restava mais ninguém nas ruas.
Tiozinho, agora, ficou totalmente só observando as cinzas e toda aquela fumaça que subia dos escombros.
Pareceu-me que o poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade fora escrito para ele:“E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?...
está sem discurso,
está sem carinho
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?...
...Com chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
se gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”
Agora chovia torrencialmente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto cansado e surrado pelo tempo.
A perda do que não lhe pertencia doía fundo na sua alma e o deixava petrificado.
Ficou assim por um longo tempo em meio à chuva.
Tiozinho resignou-se.