O julgamento
Sidnei Alves da Rocha
Não sei ao certo o que aconteceu (nem sei ao certo o que acontecia naquele momento), mas lembro-me perfeitamente bem de que estava no meio de uma multidão que gritava enlouquecida.
Havia uma espécie de palco e fui me aproximando dele, espremido pela multidão. Consegui chegar bem na sua frente.
Olhei para o lado e vi mais nove companheiros meus lá do meu trabalho, inclusive o pessoal do grupo de formação. Estávamos todos vestidos com roupas superestranhas. Todos nós usávamos saias. Sei lá. Pareciam saias.
Havia um homem no palco.
– Pilatos! – alguém exclamou do meu lado.
Olhei espantado para ele.
– Pilatos – repeti baixinho.
Era mesmo.
Usava sandalinha básica e minissaia. Hum...
Pilatos disse:
– Tenho aqui a minha direita um Galileu e a minha esquerda o meliante Barrabás.
Após uma pausa, concluiu:
– Quem vocês acham que devo soltar?
Ninguém respondeu.
Você acha que uma viva alma no meio daquela multidão iria se comprometer?
– Quem eu devo soltar? O Galileu ou Barrabás? – Pilatos insistiu enfurecido.
Diante da fúria, meus nove companheiros de trabalho e eu respondemos:
– Barrabás! Barrabás! Barrabás!
A multidão permanecia em silêncio.
Após uma longa pausa, Pilatos, agora se dirigindo à multidão, perguntou:
– Devo soltar o Galileu?
A multidão continuou sem responder. O silêncio a esta altura era gritante.
– Quem aqui concorda com estes dez que querem que eu solte Barrabás?
As pessoas sequer respiravam. Ninguém quis se intrometer. Sequer um dedinho fora levantado.
– Já que Barrabás obteve dez votos – disse Pilatos – eu o soltarei.
Pilatos virou-se para nós e questionou:
– Vocês acham que este problema é mais importante, importante ou menos importante?
Olhamo-nos por alguns segundos e, em uníssono respondemos:
– Mais importante!
– Então – voltou a falar Pilatos – vamos à análise da situação. Elaborem ação, sub-ações e responsável pela ação. Vocês têm dez minutos para fazerem isso. O problema é: Falta soltar Barrabás e crucificar o Galileu.
Desesperamo-nos. Havíamos entendido que ele estava se referindo ao nosso problema, afinal, só nós é que entregamos um e libertamos o outro.
Mas assim mesmo partimos para a resolução do problema.
Após um tempo refletindo, Pilatos nos disse que o tempo havia se esgotado e nos pediu para apresentar as nossas conclusões para a planária.
Cada um de nós segurou um papiro e expomos as nossas conclusões:
AÇÃO: Crucificar o Galileu e absolver Barrabás.
SUB-AÇÕES:
1 – Cortar árvore para a cruz;
2 – Fazer um levantamento da quantidade e do tamanho dos pregos;
3 – Fazer um estudo do local adequado para a crucificação;
4 – Firmar parceria com a marcenaria para a fabricação da cruz;
5 – Contratar alguém para o transporte da cruz até o local escolhido.
– Bom não deu tempo de pensarmos no responsável, mas tem de ser a marcenaria – comentamos.
– A marcenaria irá executar a ação. Ela não pode cobrar dela mesma. Os responsáveis pela ação devem ser vocês – bradou Barrabás, já demonstrando certa autoridade.
Olhamos com ódio para ele, mas Pilatos gostou da ideia e ficamos todos nós responsáveis pela ação.
Pilatos dirigiu-se a uma mesa no canto do palco e apanhou uma ampulheta. Virou-a e nos disse que o nosso tempo era curto. Era só o tempo de toda a areia cair.
A areia de uma ampulheta que se preze demora exatamente uma hora para passar de uma parte a outra. Este, portanto, era o nosso tempo.
Saímos dali voando.
A multidão recomeçou a gritar.
Fomos até a marcenaria e em pouquíssimos grãos de areia conseguimos convencer os dois gregos de lá, Anhaia e Chicus, se não me engano, a serem nossos companheiros de aventura.
Fomos ao mato e cortamos a árvore. Era madeira de lei. Mogno, me pareceu.
Os dois marceneiros puseram mãos à obra e logo a cruz estava pronta.
– Agora o problema não é mais nosso, contratem um camelista para o transporte – disseram-nos os marceneiros.
Não sabíamos a quem procurar, mas eles nos indicaram um camelista que não era dos bons e que, por isso, cobraria bem baratinho.
Encontramos o homem.
Ele se apresentou com o nome de Carvaliotes, um meio-irmão de Judas Iscariotes, como ele mesmo se apresentou.
Por suas características barbeiras, ele cobrou metade do preço que um camelista mediano cobraria, mas nem esse dinheiro nós tínhamos.
Possuíamos umas poucas moedas e ele as aceitou. Não dava nem um terço do preço justo.
Ele ajeitou a cruz para o transporte e já na saída derrubou uma porção de arvorezinhas. No caminho derrubou a cruz diversas vezes e, ao entrar na cidade, atropelou duas crianças e uma velhinha, mas não foi nada grave.
Quando chegamos em frente ao palco, após a multidão nos ter aberto caminho, ainda restavam alguns poucos grãos de areia na parte de cima da ampulheta.
Pilatos nos parabenizou pela agilidade, entretanto fez algumas ressalvas ao estado da cruz. Não fosse Carvaliotes, ela estaria perfeita.
Carvaliotes subiu no palco e quis se achar, só porque ele havia transportado a cruz e só porque o seu meio-irmão entregara o Galileu com um beijo, em troca de algumas moedas de ouro.
Pilatos mandou o homem “pegar descendo” e disse que ali em cima só deveriam ficar ele, o Galileu e Barrabás.
Carvaliotes fuzilou Barrabás com o olhar e lhe jurou ódio eterno, desaparecendo em seguida.
Pilatos lavou as mãos e mandou crucificar o Galileu.
Os dez companheiros de trabalho desmaiaram.
Despertei ouvindo batidas na porta. Lembrei-me do Galileu, de Barrabás e de toda aquela história, mas percebi que estava em minha cama, na minha casa e minhas roupas já não eram esquisitas (pelo menos eu gosto delas).
Levantei-me e olhei o relógio. Eram sete horas.
Fui até a porta e a abri. Deparei-me com um fiscal do IBAMA que me apresentou uma multa dizendo:
– Eu vi o mogno que vocês derrubaram dois milênios atrás. Ah, também vi as arvorezinhas que foram juntas.
Apanhei a multa que ele me apresentou. Olhei seu conteúdo. Cinquenta mil reais era o seu valor.
– Mas como? – espantei-me.
– Não se preocupe – disse-me o fiscal – você não está só nessa. Já multamos oito dos seus comparsas. Só escapou um que fugiu para a BR 80, mas já estamos no encalço dele.
O homem foi embora e eu me preparei para ir ao trabalho.
Estava bastante preocupado. Onde iria arranjar cinquenta mil reais?
Encontrei-me com os outros companheiros no corredor, cada um com sua multa na mão e resolvemos falar com o chefe.
Ao entrarmos em sua sala, ficamos boquiabertos e exclamamos em coro:
– Não é possível! Vvocê... e Barrabás... são a mesma pessoa!
Houve o segundo desmaio coletivo.
Um comentário:
Agora eu sei de quem é a culpa pelo aquecimento global, kkkk.
Muito bem maninho, parabens, adorei.
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