sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Paraíso “perdido”

Paraíso “perdido”
Sidnei Alves da Rocha
“Há histórias que são tão verdadeiras que às vezes parecem que são inventadas”. Muitas delas ficam enclausuradas em nós por muito tempo. Querem sair. Esperam uma brecha, uma oportunidade para flanarem por aí, a “voar fora da asa”. Uma história só tem sentido se ganhar livremente a vastidão, levando-se em conta que “não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou”.
Num momento de cochilo, esta história adormecida em mim há muito tempo começou bobinando cá dentro e escapou e o poder da história tomou todo o meu ser e a caneta correu livremente sobre a folha de papel e saiu esta narrativa.
O moço chamava-se Francisco e, após ter sido aprovado em um concurso do IBGE foi escalado para recensear uma aldeia da FUNAI com cerca de 2.000 índios.
Missão difícil e demorada. Levaria alguns meses para concluir o trabalho.
Os indígenas não falavam português (nem ele Tupi-guarani), à exceção de um jovem que tinha sido alfabetizado em uma escola dos brancos e que foi convidado para ser o seu guia, tradutor e porta-voz.
O recenseador fazia as perguntas e o índio as traduzia para os demais na Língua Tupi.
A primeira semana foi difícil.
Aquela gente estranha parecia inculta, atrasada e sem nada a lhe oferecer.
Sentiu-se superior.
Ele sim tinha algo a ensinar. Era estudado. Já tinha Segundo Grau completo.
O seu guia, coitado, estudara somente até a 4ª Série primária.
Uma índia iria cozinhar para ele.
Para a primeira refeição ele havia levado arroz, feijão e carne seca (coincidentemente, para os demais dias também).
Ela cozinhou o feijão e fez o arroz com carne seca. Só havia um porém: ninguém ensinou a ela como preparar a carne seca, ela não sabia e a carne não fora fervida nem posta de molho para extrair o excesso de sal.
A comida ficou horrível.
Ele lhe ensinou como proceder e nos outros dias tudo correu bem com a alimentação.
Após um dia inteiro de trabalhos complicados, Francisco e o índio se sentaram em volta da fogueira para conversar.
O diálogo fluiu amigavelmente e, para a grande surpresa de Francisco, aqueles indígenas tinham mais a lhe ensinar do que o contrário.
Em certa ocasião, o índio perguntou-lhe sobre a terra, o sol, a lua e as estrelas.
E Francisco contou-lhe tudo o que sabia: que a terra era redonda e que girava em torno do sol etc., etc., etc. Quando desenhou no chão o sistema solar e, em torno do globo terrestre uma porção de homenzinhos a se equilibrar, o índio se assustou e perguntou-lhe por que aqueles homens estavam ali, fora da terra. Na sua imaginação (até a 4ª Série não se aprendia isso) as pessoas e tudo o que existe ficavam dentro da terra e não sobre ela como demonstrava o desenho e, além do mais, para o índio, ela não era redonda, não podia ser redonda.
Depois das devidas explicações, o índio perguntou a Francisco por que as pessoas não caíam e ele lhe explicou sobre a Lei da Gravidade e toda essa história de força de atração. Falou sobre Isaac Newton, sobre a maçã, sobre o bicho da maçã...
No decorrer do tempo, o índio também ia lhe ensinando muitas coisas e Francisco compreendeu que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios” e descobriu ainda que “No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira”. Percebeu então que “o verbo tem que pegar delírio” e Francisco confessou seus “bestamentos” e concluiu que só sabia “o nada aumentado”. Ficou confuso e se perguntou: “Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude?” Vasculhou em seu interior e a pergunta ficou sem resposta.
Em outra bela tarde, Francisco e seu índio conversavam sobre religião e o índio quis saber sobre o Deus dos brancos.
O recenseador lhe explicou tudo o que sabia sobre o Onipotente e o menino Jesus. Em seguida perguntou-lhe sobre o Deus dos indígenas e ele lhe explicou que o seu Deus era um menino loiro, com cabelos da cor do fogo e que morava na outra margem do rio, numa imensa e conservada floresta. Quando um índio morria, seu espírito ia até a margem do rio e o menino loiro, seu Deus, atravessava-o caminhando sobre suas águas, pegava o espírito no colo e o transportava até a outra margem do rio e se embrenhavam na mata virgem. Lá, o espírito do índio se juntava a inúmeros outros espíritos e viveriam neste paraíso para todo o sempre, caçando, pescando e se alimentando também das raízes e frutos abundantes que a floresta lhes fornecia.
E Francisco foi tomado pelo encantamento, concluiu seu trabalho e pelo resto de sua vida carregou os ensinamentos, a pureza e a cultura daquela gente.
“E ele se estimou”.
PS.: As frases destacadas foram extraídas de poesias do grande poeta matogrossense Manoel de Barros.

Possibilidades

Possibilidades
Sidnei Alves da Rocha
Quisera eu ter o dom dos grandes escritores para produzir belas histórias.
Poderia transformar os fatos mais banais em aventuras e desventuras fabulosas.
Transformaria qualquer pessoa em grande celebridade e tornaria importante o mais comum dos seres humanos utilizando o poder incontestável da palavra.
Olharia pelas ruas a procura de personagens autênticos e brilhantes pois, por trás de cada rosto anônimo na multidão, existem histórias belas ou tristes que merecem ser contadas.
Se tivesse este dom, contaria a história de um mendigo de olhar profundo e triste que passa seus dias vagando pelas ruas desde o dia em que sua casa, onde morava com sua filhinha, pegou fogo.
Narraria o fato dizendo que ele estava no trabalho e que, quando chegou, a sua casa já ardia em chamas. Desesperado, quis entrar, mas disseram-lhe que sua filha já tinha sido levada pelo Conselho Tutelar para a Casa de Apoio. Nove anos tinha a sua menininha.
Diria que esta foi a sua segunda grande dor. A primeira e insuperável foi quando sua adorada esposa faleceu. A filha contava dois anos de idade na época. Desde então cuidava sozinho dela, sempre na mesma casa, sendo um pai zeloso e presente, sem jamais lamentar sua vida ou verter uma lágrima sequer pelas desgraças sofridas.
Diria ainda que, junto com esta sua segunda grande perda veio, de mãos dadas com ela, a terceira perda considerável de sua vida. O emprego de tantos anos lhe fora arrancado sem mais nem menos. Alegaram contenção de despesas, mas em seu lugar já estava trabalhando um vigoroso jovem e, por isso, passou em um bar e, pela primeira vez na vida encheu a cara de cachaça para afogar as mágoas acumuladas ao longo daqueles anos todos. Chegando a casa mais tarde que de costume encontrou a cena lamentável. Culpou-se. Chorou. Secou as lágrimas e foi em busca da filha. Chegando bêbado à Casa de Apoio, disseram-lhe que ele não podia ficar com a filha, que era alcoólatra e irresponsável. Então o homem contou a sua história e isto piorou a situação: bêbado, sozinho, sem casa e desempregado.
– Não dá – disseram-lhe – sua filha irá para a adoção.
O homem chorou mais uma vez e ganhou as ruas.
Afirmaria que o mendigo ficou nelas por longos 15 anos sem saber notícias de sua filha. Nunca mais bebeu, nem sorriu, nem chorou. O que ainda o mantinha vivo era a esperança de um dia encontrar sua filha, mas às vezes achava difícil, ou quase impossível numa cidade tão grande e com tanta gente indo e vindo.
Anunciaria que numa tarde parou uma Van em uma esquina e desceu dela uma bela moça que oferecia sopa para os moradores de rua e olhava atentamente para cada um deles. A moça o olhou de longe e sorriu. Depois de longos anos, teve vontade de sorrir também e correspondeu ao sorriso da moça. Ela foi se aproximando, se aproximando...
Concluiria dizendo que, ao se olharem nos olhos os dois choravam e riam ao mesmo tempo e se abraçaram longamente. Enfim, pai e filha tinham se reencontrado. Ela vivera até os 20 anos num abrigo e de lá só saiu para trabalhar. Conheceu um bom moço em seu trabalho e se casaram. Com a ajuda de amigos e da empresa, começou a distribuir sopas no intuito de localizar o pai. Mesmo encontrando-o, nunca mais parou de ajudar os mendigos. Ela levou o pai para casa e passaram a compartilhar muitas alegrias e tristeza, mas enfim, felizes por estarem novamente juntos.
Mas meu tempo se esgotou. Volto para o meu escritório e vou fazer as minhas escritas corriqueiras. Vou produzir o meu ofício, com seu fechamento manjado, redundante e antigo, transcrever minha carta comercial e digitar meu requerimento, tudo copiado, à exceção de algumas palavras que troco para não ser tão repetitivo.
E inevitavelmente caio na real.
Sem mais para o momento...

Os pequenos ladrões e o mergulho da santa

Os pequenos ladrões e o mergulho da santa
Sidnei Alves da Rocha
Somos de uma família de dez irmãos. Família numerosa, como se vê.
Assim sendo, cada um tem suas características, apesar de virem do mesmo pai e da mesma mãe. Cada um de nós é único, incomparável na sua incompletude.
Um ou outro gostava de cigarros; um ou outro gostava de uma cachacinha; um ou outro adorava política (a partidária); um ou outro gostava de Pablo Neruda; um ou outro amava Chico e Caetano; um ou outro tinha apreço por pequenos furtos, alguns adoravam roubar melancia, outros; milho.
Os quatro mais novos – minhas três irmãs e eu – encaixávamos na última categoria, mas esta arte não podia ser praticada a qualquer hora, em qualquer dia. Ela carecia de um momento especial.
Por que roubar milho e não colhê-lo na nossa própria roça? Simples. Porque a maior parte de nossas terras era formada por pastagens e uns dois alqueires que sobravam eram arrendados e os arrendatários só plantavam algodão.
Quem favorecia nossa predisposição para este tipo de furto, em especial, era o nosso vizinho de sítio, que sempre plantava milho nas terras dele, elas não tinham pastagens e eram grandes como as nossas.
Éramos praticamente uma quadrilha (quadrilha que se preze tem quatro componentes), um grupo composto por crianças e adolescentes.
Este grupo só enfrentava um problema: o medo.
Nosso pensamento era sempre o de que alguém nos apanharia com a boca na botija (ou com as mãos no milho, como queiram). Por isso aguardávamos pacientemente a vinda da chuva. Isso favorecia nossas ações. No nosso pensamento, ninguém além de nós teria coragem para sair na chuva para roubar ou vigiar o milho.
Quando o tempo de chuva começava a se formar, apanhávamos os sacos e ficávamos de prontidão para o grande momento que estava por vir.
Tínhamos que ser ágeis, pois às vezes a chuva era bastante rápida e a plantação de milho, apesar de o sítio do nosso vizinho ser contíguo ao nosso, ficava a quase dois quilômetros de nossa casa.
Para a nossa alegria, sempre chovia e sempre tinha milho e com isso nós nos deliciávamos com as pamonhas, os curais, os bolos e as espigas de milho assadas e cozidas que preparávamos.
Era uma parceria e tanto: nosso vizinho plantava e nós ajudávamos a colher.
Certa feita, lembro-me de que o milharal estava lindo, as espigas estavam convidativas e o céu estava azul, sem uma nuvem sequer para termos esperanças de uma farta colheita.
Minha mãe sempre brigava com a gente. Mas no fundo acho que ela gostava dessas nossas pequenas travessuras. Talvez, vendo o milho no ponto de ser colhido, perguntava-se: “Ué, hoje os meninos não vão?”
A ansiedade bateu. A vontade de fazer aqueles pratos deliciosos era incontrolável e o céu continuava azul e sem uma nuvem sequer.
Chegada a hora do almoço, comemos meio que contrariados pela falta de algum ingrediente em nossa refeição que ainda estava na roça do vizinho, à nossa espera e que tínhamos a certeza de que viria para nós mais cedo ou mais tarde.
Por volta das 13 horas o céu já não estava totalmente azul e já podíamos visualizar algumas nuvens de chuva se formando.
Animamo-nos e já formos preparar os sacos para a colheita.
Não demorou muito e a chuva caiu torrencialmente. Apanhamos os sacos e saímos em disparada para o milharal que nos aguardava também com ansiedade.
Colhemos o milho e o ensacamos.
Cada um pôs seu saco nas costas e saímos de lá às pressas (mesmo com chuva ainda tínhamos um pouquinho de medo de sermos apanhados).
Quando íamos atravessar a cerca de volta para o nosso sítio, nós quatro tivemos a absoluta certeza de que um raio caiu sobre ela e correu por seus fios de arame farpado.
Olhamo-nos por alguns segundos e minha irmã mais velha exclamou, com as duas mãos na cabeça:
– Meu Deus do Céu! A santinha!
– Que santinha? – perguntamos.
– A santinha que a mãe ganhou da vó. Eu a mergulhei na água e me esqueci de tirar – respondeu ela em pânico.
– Jesus! – exclamamos os três em coro.
Há um tempo minha mãe ganhou da minha avó uma imagem de uma santa de mais ou menos 10 cm. Segundo consta, ela era meio milagreira, pois fazia chover.
Quando o tempo estava muito seco, minha avó punha a imagem de cabeça para baixo dentro de um copo com água e, dizem que dava certo, que chovia mesmo.
Acreditamos então que quem fizera chover nesse dia fora a santa.
Enchemo-nos de coragem, atravessamos a cerca e fomos tirá-la da água.
Seria possível uma santa ajudar aqueles ladrõezinhos?
Nós achávamos que sim, afinal, que santo se furtaria em ajudar aqueles adoráveis gatunos?
Chegamos em casa com os sacos carregados nas costas. Minha irmã mais do que depressa entrou, tirou a santa da água, enxugou-a e a pôs no seu altarzinho.
Minha mãe ralhou um pouquinho por causa do roubo do milho, mas não contamos a ela sobre o mergulho da santa.
Parou de chover.
Descascamos as espigas de milho e fomos fazer os pratos deliciosos de que tanto gostávamos.

Minha primeira vez

Minha primeira vez
Sidnei Alves da Rocha
Meu cachorro é muito, muito inteligente.
Certa vez ele me pediu papel e caneta e disse-me que precisava escrever as suas impressões, as suas memórias, os seus sentimentos...
Não queria falar com medo de se esquecer de coisas importantes. Salientou que o melhor mesmo era escrever. Teria tempo para refletir e diria tudo aquilo que desejava dizer.
Uma semana depois encontramos, sem querer, no meio de seus pertences um texto que reproduzimos e agora publicamos para que todos conheçam sua sagacidade.
Ei-lo:
“Meu nome é Jack.
Sou da raça poodle.
Fui trazido para esta casa há oito anos, quando fui adotado por este casal maravilhoso que me tratou e me trata como um filho.
Lembro-me de que quando cheguei, eu era um montinho de nada, puro pelo.
Minha antiga dona disse para eles que eu iria chorar muito na primeira noite.
Quem ela pensa que é para falar assim? Por acaso ela entende de psicologia canina?
Só para contrariar a megera, não chorei nadinha.
Me acostumaram mal e eu abusei.
Não comia e nem como sozinho (“...a solidão é fera, a solidão devora; é amiga das horas prima-irmã do tempo e faz nossos relógios caminharem lentos...”). Meu papai sempre tem de estar comigo para eu poder comer. Quando eu queria aprontar, fazia greve de fome e ele tinha de me dar ração na boca, uma por uma, senão eu não me alimentava e, para ele me conquistar novamente, demoraaaaava.
Fui mimado. Sou cachorro mimado, e daí?
O dia mais feliz da minha vida foi quando eles trouxeram para mim uma cachorrinha para me desvirginar. Ela também era poodle.
A princípio não gostei muito dela.
Confesso ser um pouco racista. Eu sou todo pretinho, entende? Ela era toda branquinha.
Mas logo me afeiçoei a ela e começamos a conversar.
Ficamos meio constrangidos porque os dois (papai e mamãe) ficaram em cima da gente, acompanhando cada passo que dávamos.
Minha mamãe saiu logo para os seus afazeres e meu papai ficou nos observando, nos cuidando, seguindo todos os nossos passos e ações. Nem me permitiu fazer as preliminares. Ele estava mais ansioso do que eu.
Sou bem instruído e esta atitude de papai me lembrou aqueles pais antigos lá da época dos coronéis que levavam seus filhos adolescentes para a zona a fim de iniciá-los sexualmente.
Estávamos num papo legal e ele ficou ali, na pressão.
Puxa, na pressão eu não funciono!
E ele me botou em cima dela.
Eu, para não contrariá-lo, fiz todos os movimentos. Nunca tinha feito isso, mas já lera a respeito.
Só que ele percebeu que não tinha rolado e me disse uma coisa que me magoou muito: 
– Vai, Jack, acerte em qualquer buraco!
Fiquei com a cara no chão.
Logo eu, um gentleman, para os leigos, um tremendo cavalheiro.
Ainda bem que a gata... (Argh, eu detesto gatas) a cachorrinha estava de costas para mim e não a olhei nos olhos nesta hora.
Eu estava bastante constrangido. Não deu. Aí eu brochei.
Ainda bem que ele desistiu e foi fazer outras coisas.
Pedi desculpas a ela e reiniciamos nosso relacionamento.
Cara, foi incrível.
Era virgem, porém não era otário.
Ela era linda, mas eu mal a conhecia.
Não queria ter o meu nome sujo na praça nem ser levado ao Fórum para assumir a paternidade de possíveis filhotes.
Peguei um preservativo de cachorro e foi ali, debaixo da mangueira que aconteceu o amor.
Foi lindo, foi maravilhoso, foi indescritível. Me veio à cabeça uma antiga canção que ouvi no rádio e que traduzia perfeitamente bem aquele momento “...depois da loucura total sua respiração pouco a pouco se acalma e eu te peço perdão, violento demais, quase que te arranhei...”
Deitamo-nos abraçados (eu a abracei por trás) e adormecemos.
Para despistar os dois bocós, até hoje eu não ergo a patinha para fazer xixi.
Eles ainda acreditam que sou virgem.”

A videoconferência

A videoconferência

“...Eu não sei
nada sobre as grandes coisas do mundo, mas
sobre as pequenas eu sei menos.”
Manoel de Barros

Minha esposa e eu dormíamos como dois anjinhos. Ela, de barriga para cima e eu, de lado e dando-lhe as costas.
Por volta da meia-noite acordei ouvindo vozes que me pareceram muito distantes.
Virei-me de barriga para cima e as vozes cessaram.
Fiquei quieto. Mal respirava.
As vozes recomeçaram.
Eu já estava bem acordado. Atinei os sentidos e apurei bem os ouvidos para distinguir de onde vinha aquela discussão.
Percebi que o som não vinha de fora da nossa casa. Mas como, se na casa só estávamos nós dois e o nosso cachorrinho Jack? (este, apesar de ser bem inteligente, que eu saiba não fala).
Busquei na memória o passo a passo antes de nos deitarmos. Tinha a absoluta certeza de que a televisão e o rádio estavam desligados.
– Não pode ser! – exclamei baixinho.
A realidade me veio pouco a pouco, em gotas, mas me custava acreditar ser aquilo possível de acontecer.
Apurei mais ainda os ouvidos e fui tomado pelo encantamento daquele som que, agora sim podia distinguir de onde vinha. Só restava saber por que discutiam tanto.
Olhei para a minha barriga e em seguida para a barriga da minha esposa que dormia profundamente ao meu lado.
Não podia ver seus interiores, mas era de lá que aquele vozerio vinha, disso eu já tinha absoluta certeza.
Pasmado, descobri que nossas solitárias e nossos vermes haviam organizado uma videoconferência para discutirem e protestarem contra alguma coisa. Não sabia ainda o que ou contra o quê.
A solitária da minha esposa, uma espécie de Che Guevara intestinal, conhecida pelo nome de Tênia Solium, organizara o evento e liderava aquela discussão. Aliás, até os vermes dela (da minha esposa) eram metidos a besta e a querer mandar nos meus. O incrível é que eles herdaram da minha amada a ânsia pela ordem, a vontade de mandar sempre, um tipo de reprodução, em nossas barrigas, do que acontece em nossa casa. Os meus até que tentaram liderar, mas foram massacrados pelos dela e ficaram mesmo como coadjuvantes na história e eram liderados pela minha solitária Taenia Sós.
Tênia discursava naquele momento:
– Companheiros, há anos habitamos estes corpos. Há anos somos fiéis companheiros desses dois. Há muito nos acostumaram com a deliciosa e nutritiva carne vermelha, com a qual nos deliciávamos.
Observou o efeito que estas palavras produziram na plateia e, logo em seguida, concluiu:
– Agora, por uma questão de saúde, dizem eles, estão mudando os seus hábitos alimentares. Estão na base do suquinho verde de manhã, sopas, arroz, feijão e muitas saladas e legumes, além de vitaminas com muitas frutas, leite e aveia. De quando em vez um peitinho de frango ou um peixinho como mistura.
– Assim não dá – bradou Taenia Sós – não podemos mais aceitar a refeição que nos dão. Abaixo o suco verde!
Alguns poucos, em coro, repetiram:
– Abaixo o suco verde! Abaixo o suco verde!
Terminou sua fala sugerindo:
– Vamos atacar alguns órgãos vitais destes dois. Vamos radicalizar.
Fui tomado pelo pânico e comecei a temer pela nossa saúde, mas Tênia Solium interferiu:
– Senhores, não podemos ser tão radicais. Se fizermos isso virão médicos e poderão descobrir que os causadores de tudo somos nós.
Nesta altura eu já estava torcendo pela Tênia e nutria grande simpatia por ela.
Tênia, sendo bastante enfática, disse:
– Com esta atitude, nós mesmos seremos prejudicados. Não se esqueçam de que há pouco tempo nossa hospedeira fez aquele exame do ferrinho que indicou a presença de vermes e receitaram para ela leite de mamão que exterminou com boa parte da nossa colônia. Estamos começando a nos recuperar agora.
– Disso eu me lembro bem – interrompeu Taenia Sós. Todo dia levantávamos de madrugada para ir roubá-lo do mamão da vizinha. Esta tarefa coube ao meu hospedeiro e eu não pude fazer nada para impedi-lo. Oito dias seguidos, nove gotinhas extraídas e bebidas todo santo dia.
– Que tal nos hospedarmos no corpo do Jack? – sugeriu um verme da plateia.
– Tá louco? – respondeu Taenia Sós – o cachorro só tem pelo. Se coubéssemos todos nós nele seria uma boa. Estes dois vivem fazendo as suas vontades. É só ele fazer uma grevinha que lhe dão tudo. Daríamos uma pressão no bichinho, ele bateria as patinhas tipo “não quero ração! não quero ração!” e teriam de lhe dar carne. Sempre fazem suas vontades estes bocós.
A ideia foi descartada. O Jackinho já era habitado e a transferência das nossas solitárias e dos nossos vermes seria muito complicada e cara. Melhor mesmo é salvar o mundinho onde se vive do que abandoná-lo.
Por um bom tempo o silêncio foi quase absoluto, todos refletindo sobre as últimas falas, à exceção de algumas crianças-vermes que haviam sido levadas por suas mães e que não paravam de conversar, de brincar e de atazanar os adultos que queriam prestar atenção, igualzinho àquilo que acontece nos eventos que envolvem professores.
Tênia quebrou o quase silêncio:
– Precisamos ter consciência. Nosso meio ambiente precisa ser preservado. Precisamos conservar nossa fauna e nossa flora intestinal. A nossa sobrevivência depende da boa saúde da nossa casa. Se ela adoecer, teremos sérios problemas, como superaquecimento intestinal e, quiçá, global, elevação das toxinas e diminuição de líquidos.
Apresentaram então duas propostas para fechar a questão: uma era ser radical, botar uma pressão e a outra era se adaptar, aceitar a comida que tinham com o intuito de salvar as próprias peles. Fizeram uma votação e Taenia Sós foi a única que votou na primeira proposta, defendendo-a com unhas e dentes, ou com aquilo que as solitárias porventura tenham e ficou mais solitária do que nunca.
Eu não estava mais conseguindo manter meus olhos abertos. O sono chegou para valer, mas estava agora um pouco mais aliviado com a esmagadora vitória da proposta defendida por Tênia Solium.
Após anunciar o resultado, Tênia concluiu em bom espanhol:
– Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!
E deu por encerrada a sessão.
Eu não aguentava mais e pequei no sono.