Paraíso “perdido”
Sidnei Alves da Rocha
Sidnei Alves da Rocha
“Há histórias que são tão verdadeiras que às vezes parecem que são inventadas”. Muitas delas ficam enclausuradas em nós por muito tempo. Querem sair. Esperam uma brecha, uma oportunidade para flanarem por aí, a “voar fora da asa”. Uma história só tem sentido se ganhar livremente a vastidão, levando-se em conta que “não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou”.
Num momento de cochilo, esta história adormecida em mim há muito tempo começou bobinando cá dentro e escapou e o poder da história tomou todo o meu ser e a caneta correu livremente sobre a folha de papel e saiu esta narrativa.
O moço chamava-se Francisco e, após ter sido aprovado em um concurso do IBGE foi escalado para recensear uma aldeia da FUNAI com cerca de 2.000 índios.
Missão difícil e demorada. Levaria alguns meses para concluir o trabalho.
Os indígenas não falavam português (nem ele Tupi-guarani), à exceção de um jovem que tinha sido alfabetizado em uma escola dos brancos e que foi convidado para ser o seu guia, tradutor e porta-voz.
O recenseador fazia as perguntas e o índio as traduzia para os demais na Língua Tupi.
A primeira semana foi difícil.
Aquela gente estranha parecia inculta, atrasada e sem nada a lhe oferecer.
Sentiu-se superior.
Ele sim tinha algo a ensinar. Era estudado. Já tinha Segundo Grau completo.
O seu guia, coitado, estudara somente até a 4ª Série primária.
Uma índia iria cozinhar para ele.
Para a primeira refeição ele havia levado arroz, feijão e carne seca (coincidentemente, para os demais dias também).
Ela cozinhou o feijão e fez o arroz com carne seca. Só havia um porém: ninguém ensinou a ela como preparar a carne seca, ela não sabia e a carne não fora fervida nem posta de molho para extrair o excesso de sal.
A comida ficou horrível.
Ele lhe ensinou como proceder e nos outros dias tudo correu bem com a alimentação.
Após um dia inteiro de trabalhos complicados, Francisco e o índio se sentaram em volta da fogueira para conversar.
O diálogo fluiu amigavelmente e, para a grande surpresa de Francisco, aqueles indígenas tinham mais a lhe ensinar do que o contrário.
Em certa ocasião, o índio perguntou-lhe sobre a terra, o sol, a lua e as estrelas.
E Francisco contou-lhe tudo o que sabia: que a terra era redonda e que girava em torno do sol etc., etc., etc. Quando desenhou no chão o sistema solar e, em torno do globo terrestre uma porção de homenzinhos a se equilibrar, o índio se assustou e perguntou-lhe por que aqueles homens estavam ali, fora da terra. Na sua imaginação (até a 4ª Série não se aprendia isso) as pessoas e tudo o que existe ficavam dentro da terra e não sobre ela como demonstrava o desenho e, além do mais, para o índio, ela não era redonda, não podia ser redonda.
Depois das devidas explicações, o índio perguntou a Francisco por que as pessoas não caíam e ele lhe explicou sobre a Lei da Gravidade e toda essa história de força de atração. Falou sobre Isaac Newton, sobre a maçã, sobre o bicho da maçã...
No decorrer do tempo, o índio também ia lhe ensinando muitas coisas e Francisco compreendeu que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios” e descobriu ainda que “No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira”. Percebeu então que “o verbo tem que pegar delírio” e Francisco confessou seus “bestamentos” e concluiu que só sabia “o nada aumentado”. Ficou confuso e se perguntou: “Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude?” Vasculhou em seu interior e a pergunta ficou sem resposta.
Em outra bela tarde, Francisco e seu índio conversavam sobre religião e o índio quis saber sobre o Deus dos brancos.
O recenseador lhe explicou tudo o que sabia sobre o Onipotente e o menino Jesus. Em seguida perguntou-lhe sobre o Deus dos indígenas e ele lhe explicou que o seu Deus era um menino loiro, com cabelos da cor do fogo e que morava na outra margem do rio, numa imensa e conservada floresta. Quando um índio morria, seu espírito ia até a margem do rio e o menino loiro, seu Deus, atravessava-o caminhando sobre suas águas, pegava o espírito no colo e o transportava até a outra margem do rio e se embrenhavam na mata virgem. Lá, o espírito do índio se juntava a inúmeros outros espíritos e viveriam neste paraíso para todo o sempre, caçando, pescando e se alimentando também das raízes e frutos abundantes que a floresta lhes fornecia.
E Francisco foi tomado pelo encantamento, concluiu seu trabalho e pelo resto de sua vida carregou os ensinamentos, a pureza e a cultura daquela gente.
“E ele se estimou”.
PS.: As frases destacadas foram extraídas de poesias do grande poeta matogrossense Manoel de Barros.