Vizinhos indesejáveis
Sidnei Alves da Rocha
Sidnei Alves da Rocha
Existem inúmeros seres que padecem por causa das atitudes incorrigíveis de seus semelhantes. É como uma sina, uma marca, uma mancha difícil de ser arrancada, mudada ou apagada.
Ele era um desses, bem educado, letrado nas melhores escolas da região.
Sempre foi avesso à violência. Era casado e já tivera uma infinidade de filhos, todos com a mesma companheira, o que demonstra sua tão elogiada fidelidade.
Muitos de seus filhos enredaram-se pelo caminho do mal e espalhavam picadas aos quatro cantos da cidade. Ele, porém, fiel a sua educação quase religiosa, usava sua picadura somente em sua amada, levando-a a gozos múltiplos e intermináveis.
Moravam no quintal de uma casa em uma cidade do interior de Mato Grosso, num lugarzinho bem gostoso que fora ardilosamente arquitetado pelo seu morador, proprietário daquela residência. Em uma espécie de tanque de concreto que era usado para matar a sede do cachorro, o homem pôs uma boia a fim de manter a água sempre fresca e límpida. O cão bebia a água, a boia descia e o tanque se enchia novamente.
Ele e sua esposa moravam sozinhos e encontraram bem embaixo da boia um aconchego ideal, bem molhado como era do gosto do casal.
Ele era naturalizado. Era um egípcio de nome Aedes, um mosquito bastante alegre e apaixonado por sua companheira e pela vida.
Morriam de medo quando o cachorro vinha matar a sede próximo a sua morada. Aquela língua rosada lambendo a água deixava-os em pânico, mas não foi isso que acabou com a felicidade do casal.
Um dia uns mosquitos com diversas passagens pela polícia, moradores em outros bairros da cidade, chegaram para infernizar suas vidas.
Invadiram a casa daquelas pessoas e as picaram, para, em seguida, fugirem em estrondosa revoada.
Os moradores caíram doentes. Haviam contraído dengue dos invasores.
Receberam a visita de parentes moradores em uma cidade vizinha que, vendo-os acamados e sabendo do mal que lhes fizeram, resolveram realizar uma busca para ver se achavam os meliantes que praticaram aquela atrocidade com os seus.
Procuraram em todos os cômodos da casa. Vasculharam vasos de plantas, saliências, fissuras e todo o quintal, cantinho por cantinho, mas nada encontraram.
Na manhã seguinte, um belo sábado de sol, Aedes e sua companheira despertaram, tomaram um banho e fizeram amor como se o praticassem pela última vez.
Após a tranquilidade ter-se estabelecido, ela dirigiu-se a ele:
– Pai, temos de ir ao mercado!
– Acho que não vou, mãe, não estou me sentindo muito bem. – respondeu-lhe Aedes. (Aquela velha história de os casais com filhos tratarem-se assim. Não sei como as relações sexuais ainda eram constantes naquele lar, já que, intrinsecamente, deve ficar aquele complexo (de Édipo, talvez) e a pergunta martelando o inconsciente: “como é que alguém vai “comer” a própria mãe ou o próprio pai?”)
Ela se trocou e foi às compras. Aedes permaneceu em seu ninho de amor, alegando não estar se sentindo muito bem.
Desconfiou de febre amarela ou dengue, entretanto, lembrou-se de que não tivera contato com nenhum outro ser nos últimos meses, com exceção de sua esposa.
Achou que não era nada e se recolheu para debaixo da bóia e pôs-se a descansar, pensando no infinito amor que nutria por sua doce e adorada companheira de longas datas.
Ouviu vozes. Eram eles que tinham voltado ao quintal para continuarem as buscas.
Pelo reflexo na água, percebeu que as pessoas estavam observando o bebedouro do cachorro e, aflito, encolheu-se em um canto.
A cara de uma galega foi-se aproximando da água. Ela olhava detalhadamente todo o recipiente.
O pânico tomou conta de Aedes e ele temeu que sua tremedeira estivesse fazendo a boia vibrar.
De repente, não mais que de repente – como diria o poetinha – o rosto da galega posicionou-se bem embaixo da boia e ela começou a correr os olhos com cuidado por toda a sua extensão, indo na direção de Aedes.
O inevitável aconteceu. Os olhos dela fixaram-se nos seus e encaram-se por alguns segundos que lhe pareceram uma eternidade. Os olhos da galega feriam como chicote.
Finalmente ela exclamou:
– Foi você!
Ele, por sua vez, alegou inocência e implorou misericórdia.
Não obteve sucesso.
Trêmulo, remexeu no bolso interno de sua asa enquanto ela o observava com curiosidade.
Aedes tirou de lá um atestado, com CRM e tudo, assinado por um médico da região no qual constava que ele estava limpo. Ela, porém, mais uma vez não lhe deu crédito, acusando-o de forjar tal documento.
O pânico invadiu de vez o seu corpo e ele começou a roer as unhas, todas de uma só vez. O sangue jorrava palas pontas de seus dedos, mas esta dor era ínfima diante do que lhe havia reservado o destino.
A mulher sorriu e apanhou sua sandália de borracha. As havaianas estavam ávidas por sangue.
– Chegou o meu fim? – interrogou-se Aedes.
A galega aplicou-lhe um golpe perfeito bem no meio do corpo, jogando-o contra uma parede.
A dor que sentiu foi descomunal.
Sua asa esquerda estava separada do corpo e sua asa direita estava em frangalhos. Suas pernas estavam quebradas. Passou-lhe pela cabeça que, se se livrasse daquela enrascada, daria muito trabalho a sua amada, pois, com certeza, ficaria tetra, penta ou mesmo hexaplégico.
Olhou para o seu corpo e notou que sua razão de existir não estava mais lá. Seu ferrão desprendera-se com a pancada. Notou que as pessoas se aproximavam. Brotou-lhe um fio de esperança. Em seu imenso delírio, chegou a acreditar que elas ainda pudessem socorrê-lo.
Não sentiu mais o corpo.
Uma paz enorme o invadiu e ele se viu em um túnel escuro. Viu no fim desse túnel uma luz e começou a caminhar em direção a ela. A luz aproximava-se depressa e agigantava-se diante de seus olhos.
Em seguida tudo se apagou.
As pessoas o rodearam e a galega deu-lhe um pontapé no meio das costelas, abaixou-se e tomou o seu pulso.
Estava morto.
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