A videoconferência
“...Eu não sei
nada sobre as grandes coisas do mundo, mas
sobre as pequenas eu sei menos.”
Manoel de Barros
Minha esposa e eu dormíamos como dois anjinhos. Ela, de barriga para cima e eu, de lado e dando-lhe as costas.
Por volta da meia-noite acordei ouvindo vozes que me pareceram muito distantes.
Virei-me de barriga para cima e as vozes cessaram.
Fiquei quieto. Mal respirava.
As vozes recomeçaram.
Eu já estava bem acordado. Atinei os sentidos e apurei bem os ouvidos para distinguir de onde vinha aquela discussão.
Percebi que o som não vinha de fora da nossa casa. Mas como, se na casa só estávamos nós dois e o nosso cachorrinho Jack? (este, apesar de ser bem inteligente, que eu saiba não fala).
Busquei na memória o passo a passo antes de nos deitarmos. Tinha a absoluta certeza de que a televisão e o rádio estavam desligados.
– Não pode ser! – exclamei baixinho.
A realidade me veio pouco a pouco, em gotas, mas me custava acreditar ser aquilo possível de acontecer.
Apurei mais ainda os ouvidos e fui tomado pelo encantamento daquele som que, agora sim podia distinguir de onde vinha. Só restava saber por que discutiam tanto.
Olhei para a minha barriga e em seguida para a barriga da minha esposa que dormia profundamente ao meu lado.
Não podia ver seus interiores, mas era de lá que aquele vozerio vinha, disso eu já tinha absoluta certeza.
Pasmado, descobri que nossas solitárias e nossos vermes haviam organizado uma videoconferência para discutirem e protestarem contra alguma coisa. Não sabia ainda o que ou contra o quê.
A solitária da minha esposa, uma espécie de Che Guevara intestinal, conhecida pelo nome de Tênia Solium, organizara o evento e liderava aquela discussão. Aliás, até os vermes dela (da minha esposa) eram metidos a besta e a querer mandar nos meus. O incrível é que eles herdaram da minha amada a ânsia pela ordem, a vontade de mandar sempre, um tipo de reprodução, em nossas barrigas, do que acontece em nossa casa. Os meus até que tentaram liderar, mas foram massacrados pelos dela e ficaram mesmo como coadjuvantes na história e eram liderados pela minha solitária Taenia Sós.
Tênia discursava naquele momento:
– Companheiros, há anos habitamos estes corpos. Há anos somos fiéis companheiros desses dois. Há muito nos acostumaram com a deliciosa e nutritiva carne vermelha, com a qual nos deliciávamos.
Observou o efeito que estas palavras produziram na plateia e, logo em seguida, concluiu:
– Agora, por uma questão de saúde, dizem eles, estão mudando os seus hábitos alimentares. Estão na base do suquinho verde de manhã, sopas, arroz, feijão e muitas saladas e legumes, além de vitaminas com muitas frutas, leite e aveia. De quando em vez um peitinho de frango ou um peixinho como mistura.
– Assim não dá – bradou Taenia Sós – não podemos mais aceitar a refeição que nos dão. Abaixo o suco verde!
Alguns poucos, em coro, repetiram:
– Abaixo o suco verde! Abaixo o suco verde!
Terminou sua fala sugerindo:
– Vamos atacar alguns órgãos vitais destes dois. Vamos radicalizar.
Fui tomado pelo pânico e comecei a temer pela nossa saúde, mas Tênia Solium interferiu:
– Senhores, não podemos ser tão radicais. Se fizermos isso virão médicos e poderão descobrir que os causadores de tudo somos nós.
Nesta altura eu já estava torcendo pela Tênia e nutria grande simpatia por ela.
Tênia, sendo bastante enfática, disse:
– Com esta atitude, nós mesmos seremos prejudicados. Não se esqueçam de que há pouco tempo nossa hospedeira fez aquele exame do ferrinho que indicou a presença de vermes e receitaram para ela leite de mamão que exterminou com boa parte da nossa colônia. Estamos começando a nos recuperar agora.
– Disso eu me lembro bem – interrompeu Taenia Sós. Todo dia levantávamos de madrugada para ir roubá-lo do mamão da vizinha. Esta tarefa coube ao meu hospedeiro e eu não pude fazer nada para impedi-lo. Oito dias seguidos, nove gotinhas extraídas e bebidas todo santo dia.
– Que tal nos hospedarmos no corpo do Jack? – sugeriu um verme da plateia.
– Tá louco? – respondeu Taenia Sós – o cachorro só tem pelo. Se coubéssemos todos nós nele seria uma boa. Estes dois vivem fazendo as suas vontades. É só ele fazer uma grevinha que lhe dão tudo. Daríamos uma pressão no bichinho, ele bateria as patinhas tipo “não quero ração! não quero ração!” e teriam de lhe dar carne. Sempre fazem suas vontades estes bocós.
A ideia foi descartada. O Jackinho já era habitado e a transferência das nossas solitárias e dos nossos vermes seria muito complicada e cara. Melhor mesmo é salvar o mundinho onde se vive do que abandoná-lo.
Por um bom tempo o silêncio foi quase absoluto, todos refletindo sobre as últimas falas, à exceção de algumas crianças-vermes que haviam sido levadas por suas mães e que não paravam de conversar, de brincar e de atazanar os adultos que queriam prestar atenção, igualzinho àquilo que acontece nos eventos que envolvem professores.
Tênia quebrou o quase silêncio:
– Precisamos ter consciência. Nosso meio ambiente precisa ser preservado. Precisamos conservar nossa fauna e nossa flora intestinal. A nossa sobrevivência depende da boa saúde da nossa casa. Se ela adoecer, teremos sérios problemas, como superaquecimento intestinal e, quiçá, global, elevação das toxinas e diminuição de líquidos.
Apresentaram então duas propostas para fechar a questão: uma era ser radical, botar uma pressão e a outra era se adaptar, aceitar a comida que tinham com o intuito de salvar as próprias peles. Fizeram uma votação e Taenia Sós foi a única que votou na primeira proposta, defendendo-a com unhas e dentes, ou com aquilo que as solitárias porventura tenham e ficou mais solitária do que nunca.
Eu não estava mais conseguindo manter meus olhos abertos. O sono chegou para valer, mas estava agora um pouco mais aliviado com a esmagadora vitória da proposta defendida por Tênia Solium.
Após anunciar o resultado, Tênia concluiu em bom espanhol:
– Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!
E deu por encerrada a sessão.
Eu não aguentava mais e pequei no sono.
Um comentário:
Eta textaida de qualidade!!!! muito bommmmmmmmmmm
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