Atalhos
Sidnei Alves da Rocha
Sidnei Alves da Rocha
Quando o moço do cerimonial anunciou os nomes do terceiro e do segundo colocados, não lhe restou mais nenhuma dúvida de que ele seria o grande vencedor da noite. Ele concorria na categoria “Produção/Edição de vídeo”. Poderia ter concorrido nas outras também, mas mudaram as regras do jogo e disseram que cada concorrente deveria participar em uma única categoria.
A categoria de Produção e Edição de Vídeo, para ele, era uma barbada, mas, mesmo assim estava apreensivo. Sempre há a possibilidade de se fazer marmelada, de se tentar beneficiar um ou outro. Ele era fera em programas de computação, reconhecidamente o melhor, por isso as mudanças nas regras. Não queriam que ele ganhasse todos os prêmios. E isso era certo.
– E o grande prêmio vai para...
Seu coração bateu mais forte, suas pernas deram uma leve bambeada e ele sentiu uma quentura no rosto.
Tinha a certeza da vitória, mas mesmo assim ficou ansioso. Todos ficam. Ninguém consegue se controlar.
A demora em abrir o envelope foi longa e isto o deixava mais nervoso ainda.
– ...Gigabyte da Silva.
Ele explodiu de emoção ao ouvir o seu nome pronunciado pelo moço do cerimonial e em meio a aplausos levantou-se e saiu da sua cadeira em direção ao corredor. Estava perto da parede e se demorou a alcançá-lo, tendo de pedir licença várias vezes.
Os aplausos cessaram-se assim que ele atingiu o corredor e começou a percorrê-lo em direção ao palco.
Ouviu cochichos e risadinhas. Falavam do seu nome e o satirizavam.
Sentiu-se envergonhado, diminuto.
Quanto mais caminhava, mais o palco parecia se distanciar dele e esta sensação aumentava a sua tortura.
Os comentários se multiplicavam e as risadinhas se emendavam umas nas outras e soavam como gargalhadas.
Ele se sentiu um nada e desejou ter na vida os mesmos recursos que se tem na hora do trabalho, na frente do computador. Ele desejou somente duas teclinhas bem próximas uma da outra “Control Z”. Seriam só dois cliques e as risadinhas e os comentários e até mesmo o seu nome seriam deletados. Mas isso só era possível no PC.
Ele próprio não gostava do seu nome. Já tentara mudá-lo várias vezes, mas disseram-lhe que isso não era possível.
Indignou-se. Conhecia tanta gente que mudara de nome. Sabia de histórias de amigos que num piscar de olhos conseguiram resolver este problema que carregavam desde muito tempo e que era motivo de chacotas, piadinhas sem graça e humilhações. Quantos e quantos casos ele conhecia pesquisando na Internet. Mas por que logo com ele não era possível? Exigiu explicações e elas lhe foram dadas.
O cartorário reconheceu que o nome era mesmo muito estranho, mas disse-lhe que não sabia se seria possível a alteração. Pediu-lhe licença e foi discutir com os colegas de repartição sobre as reais possibilidades. Não chegaram a consenso algum. Dirigiu-se ao chefe e, em questão de minutos veio com a decisão definitiva e irrevogável. O homem lhe explicou direitinho os motivos.
Gigabyte saiu do cartório. No caminho para casa ainda se lembrava das últimas palavras do cartorário martelando em sua cabeça:
– Se o problema estivesse no nome – dizia ele – tudo bem. Porém, não se muda o sobrenome. É como o pai e a mãe biológicos: você os tem para toda a vida. É impossível trocar.
Achou melhor se conformar. Teria de carregar o estranho “da Silva” para o resto da vida.
Finalmente alcançou o palco. Estava gelado e suava frio.
Passaram-lhe a palavra e disseram-lhe para não se preocupar que no começo o microfone assusta mesmo. Mas quem disse que ele tinha problemas com o microfone? Dominava-o muito bem e discursava com maestria.
Recebeu o prêmio bastante constrangido. Disse algumas palavras e foi ovacionado.
A premiação lhe trouxe um pouco de alento e ele conseguiu recuperar boa parte de sua auto-estima.
Mergulhou de cabeça no trabalho.
Na intimidade ele era conhecido por GB.
Sua mulher o chamava sempre:
– GB, venha tomar seu café da manhã!
Ele respondia:
– já vou – e não ia.
Continuava trabalhando. Nem via o tempo passar.
Gigabyte tinha um estúdio em casa. E a cada dia que passava recebia mais e mais trabalhos. Todo mundo reconhecia o seu excelente desempenho profissional.
Cometia erros como qualquer um, mas quando isso acontecia, lá vinha o Control Z e tudo era desfeito.
Aliás, os atalhos eram outra grande especialidade sua. Control combinado com P, G, C, V, A... Ele era craque nisso. Mas não tinha jeito. O Control Z era o seu favorito.
Depois daquela noite da premiação, jamais deixou de desejar usá-lo no dia-a-dia, na sua vida prática. Desfaria todos os problemas, todas as burradas, todas as humilhações que sofria. As discussões acaloradas com o chefe seriam desfeitas num piscar de olhos, antes mesmo de ser despedido.
– GB, venha almoçar! – sua mulher insistia.
E lá vinha o conhecido “já vou” e nada de ir.
E assim se sucedia: “GB, venha jantar”. “GB, venha dormir”. “GB, hoje é dia do nosso sexo mensal”. Aí ele ia.
No dia seguinte a mesma rotina. E assim virava semanas, meses, anos...
Gigabyte parecia se nutrir da mesma energia que alimentava o computador. Era uma simbiose. Ele alimentava os programas e era alimentado por eles.
Word, CorelDraw, Movie Maker, Point, Áudio e Vídeo etc, etc, etc, não tinha ação que ele não executava.
Subitamente, após um dia inteiro de trabalhos extenuantes, GB começou a sentir algo estranho no cérebro. Uma transformação aparentemente se processava ali. Podia já sentir a mudança. Aquela alteração não lhe era familiar. Fechou os olhos e olhou para dentro de si. Viu em seu cérebro um teclado que continha apenas duas teclas, Ctrl Z. E ele se deliciou.
– U-hu! – deixou escapar.
Não sabia exatamente se funcionariam, mas não tardou a descobrir.
Sua mulher gritou da cozinha:
– Droga, o arroz queimou! Se tivesse desligado o fogo cinco minutos antes nada disso teria acontecido.
GB fechou os olhos e, telepaticamente, deu dois cliques e tudo se desfez e o cheiro de arroz queimado se dissipou no ar como mágica.
Passou a ter o controle da situação, verdadeiramente dono e senhor dos seus atos.
Uma palavra mais ríspida, uma briga, uma discussão com o chefe ou com quem quer que fosse, era só apertar as teclas Control Z e tudo se desfazia.
E ele conheceu a paz.
Já não precisava mais fechar os olhos para acioná-las, pensava e pronto, estava tudo desfeito, tudo resolvido.
O tempo foi passando e já era chegado o momento de mais uma entrega de premiação aos melhores da computação. Foi se inscrever e quis concorrer em todas as categorias, mas lá vinha a regra mudada no meio do caminho de novo.
– Só pode se inscrever em uma categoria – disseram-lhe.
Não teve dúvidas. Control Z e a regra voltou a ser como antes.
Ganhou todas as estatuetas, ou melhor, ficou em primeiro lugar em tudo.
A cada vez que o cerimonial pronunciava o seu nome e os comentários e as risadinhas se iniciavam, Ctrl Z neles e o silêncio reinava, só ficava a admiração da plateia.
Na última entrega de prêmios da noite, na categoria mais importante que ele ganharia pela segunda vez consecutiva, o cerimonial o chamou e disse que ia quebrar o protocolo. Aí ele não aguentou e usou as teclas Control Z despachando o cara não se sabe para onde. Ninguém mais o viu depois daquela noite. GB nem precisou usar as teclas para desfazer as piadinhas, as risadinhas e os comentários. Todos se levantaram e o aplaudiram por quase meio hora. A platéia também não estava mais aguentando aquele mala do cerimonial.
Segunda-feira de ressaca merecida após um fim de semana de glórias para Gigabyte, mas mesmo assim ele trabalhava em seu estúdio. Tinha trabalhos urgentes a fazer.
Trabalhava tranquilamente, apesar de um pouco sonolento. Súbito, começou a sentir uma comichão estranha em suas partes baixas. Seu pintinho, outrora murchinho, começou a ficar mais largo e foi aos poucos adquirindo um novo formato. Em poucos segundos já era um outro bichinho. Tinha virado um mouse.
Seus pés começaram a se afinar e a se alongar. Ficaram quadrados e com mais ou menos dois palmos na parte da frente e um palmo na de trás. Suas pernas ficaram adormecidas, seu bumbum foi-se achatando e aumentando de tamanho. Ficou quadrado. Cada uma de suas pernas, já bastante modificadas, foi para um lado do quadrado e apareceu ali, embaixo dele, uma mesa de computador, já com o mouse em cima.
A transformação agora se processava em seu tronco, que se dividiu em dois, surgindo em seu lugar uma CPU, com nobreak e tudo. Seu cérebro desceu e foi compor a CPU.
Seus braços e suas mãos viraram duas caixinhas de som. Elas eram imprescindíveis. Usava-as muito para as suas edições.
A transformação acontecia de forma tão rápida que GB nem teve tempo de gritar ou protestar ou mesmo usar o teclado de seu cérebro. Na verdade nem sabia se o usaria para aquela ocasião. Mesmo tendo medo, estava gostando daquilo.
Seus dentes e seu lábio inferiores começaram a se alongar. Foram aumentando de tamanho. Seu queixo foi-se comprimindo e tudo foi se transformando num teclado. Ele despencou na mesa e GB ficou literalmente de queixo caído. Notou que só havia duas teclas: Ctrl Z.
Seus olhos foram se dilatando e logo se emendaram um no outro. Sua cabeça foi se achatando e ele conseguiu senti-la se contraindo. Seu rosto ficou quadrado e sua cabeça ficou bem fininha. Ela era bem grande e o conjunto da obra foi um monitor LCD de 21 polegadas de última geração.
Estava tudo consumado.
Antes que pudesse instalar em si mesmo programas para falar e ouvir – os sentimentos ainda estavam com ele – veio o seu filho pequeno e ficou olhando curiosamente aquele computador magnífico. Um grito surdo perspassou toda a extensão da sala. Faltou-lhe garganta para ser ouvido. Assustou-se, pois seu filho olhava fixamente para aquele teclado estranho e ele previu o futuro.
O menino, com dois dedinhos apenas, teclou Control Z e GB viu um túnel escuro, com uma luzinha ao fundo e ela se aproximava depressa.
GB desapareceu.