Os pequenos ladrões e o mergulho da santa
Sidnei Alves da Rocha
Sidnei Alves da Rocha
Somos de uma família de dez irmãos. Família numerosa, como se vê.
Assim sendo, cada um tem suas características, apesar de virem do mesmo pai e da mesma mãe. Cada um de nós é único, incomparável na sua incompletude.
Um ou outro gostava de cigarros; um ou outro gostava de uma cachacinha; um ou outro adorava política (a partidária); um ou outro gostava de Pablo Neruda; um ou outro amava Chico e Caetano; um ou outro tinha apreço por pequenos furtos, alguns adoravam roubar melancia, outros; milho.
Os quatro mais novos – minhas três irmãs e eu – encaixávamos na última categoria, mas esta arte não podia ser praticada a qualquer hora, em qualquer dia. Ela carecia de um momento especial.
Por que roubar milho e não colhê-lo na nossa própria roça? Simples. Porque a maior parte de nossas terras era formada por pastagens e uns dois alqueires que sobravam eram arrendados e os arrendatários só plantavam algodão.
Quem favorecia nossa predisposição para este tipo de furto, em especial, era o nosso vizinho de sítio, que sempre plantava milho nas terras dele, elas não tinham pastagens e eram grandes como as nossas.
Éramos praticamente uma quadrilha (quadrilha que se preze tem quatro componentes), um grupo composto por crianças e adolescentes.
Este grupo só enfrentava um problema: o medo.
Nosso pensamento era sempre o de que alguém nos apanharia com a boca na botija (ou com as mãos no milho, como queiram). Por isso aguardávamos pacientemente a vinda da chuva. Isso favorecia nossas ações. No nosso pensamento, ninguém além de nós teria coragem para sair na chuva para roubar ou vigiar o milho.
Quando o tempo de chuva começava a se formar, apanhávamos os sacos e ficávamos de prontidão para o grande momento que estava por vir.
Tínhamos que ser ágeis, pois às vezes a chuva era bastante rápida e a plantação de milho, apesar de o sítio do nosso vizinho ser contíguo ao nosso, ficava a quase dois quilômetros de nossa casa.
Para a nossa alegria, sempre chovia e sempre tinha milho e com isso nós nos deliciávamos com as pamonhas, os curais, os bolos e as espigas de milho assadas e cozidas que preparávamos.
Era uma parceria e tanto: nosso vizinho plantava e nós ajudávamos a colher.
Certa feita, lembro-me de que o milharal estava lindo, as espigas estavam convidativas e o céu estava azul, sem uma nuvem sequer para termos esperanças de uma farta colheita.
Minha mãe sempre brigava com a gente. Mas no fundo acho que ela gostava dessas nossas pequenas travessuras. Talvez, vendo o milho no ponto de ser colhido, perguntava-se: “Ué, hoje os meninos não vão?”
A ansiedade bateu. A vontade de fazer aqueles pratos deliciosos era incontrolável e o céu continuava azul e sem uma nuvem sequer.
Chegada a hora do almoço, comemos meio que contrariados pela falta de algum ingrediente em nossa refeição que ainda estava na roça do vizinho, à nossa espera e que tínhamos a certeza de que viria para nós mais cedo ou mais tarde.
Por volta das 13 horas o céu já não estava totalmente azul e já podíamos visualizar algumas nuvens de chuva se formando.
Animamo-nos e já formos preparar os sacos para a colheita.
Não demorou muito e a chuva caiu torrencialmente. Apanhamos os sacos e saímos em disparada para o milharal que nos aguardava também com ansiedade.
Colhemos o milho e o ensacamos.
Cada um pôs seu saco nas costas e saímos de lá às pressas (mesmo com chuva ainda tínhamos um pouquinho de medo de sermos apanhados).
Quando íamos atravessar a cerca de volta para o nosso sítio, nós quatro tivemos a absoluta certeza de que um raio caiu sobre ela e correu por seus fios de arame farpado.
Olhamo-nos por alguns segundos e minha irmã mais velha exclamou, com as duas mãos na cabeça:
– Meu Deus do Céu! A santinha!
– Que santinha? – perguntamos.
– A santinha que a mãe ganhou da vó. Eu a mergulhei na água e me esqueci de tirar – respondeu ela em pânico.
– Jesus! – exclamamos os três em coro.
Há um tempo minha mãe ganhou da minha avó uma imagem de uma santa de mais ou menos 10 cm. Segundo consta, ela era meio milagreira, pois fazia chover.
Quando o tempo estava muito seco, minha avó punha a imagem de cabeça para baixo dentro de um copo com água e, dizem que dava certo, que chovia mesmo.
Acreditamos então que quem fizera chover nesse dia fora a santa.
Enchemo-nos de coragem, atravessamos a cerca e fomos tirá-la da água.
Seria possível uma santa ajudar aqueles ladrõezinhos?
Nós achávamos que sim, afinal, que santo se furtaria em ajudar aqueles adoráveis gatunos?
Chegamos em casa com os sacos carregados nas costas. Minha irmã mais do que depressa entrou, tirou a santa da água, enxugou-a e a pôs no seu altarzinho.
Minha mãe ralhou um pouquinho por causa do roubo do milho, mas não contamos a ela sobre o mergulho da santa.
Parou de chover.
Descascamos as espigas de milho e fomos fazer os pratos deliciosos de que tanto gostávamos.
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