sexta-feira, 27 de março de 2009

A Cigarra, a Formiga e a Aleluia

A Cigarra, a Formiga e a Aleluia
Sidnei Alves da Rocha
No verão, período de vacas gordas, a Cigarra e a Formiga trabalhavam, trabalhavam, trabalhavam...
A Formiga, no entanto, pensava no futuro e economizava cerca de 80% daquilo tudo que ganhava como recompensa do seu suor. Já a Cigarra, dissimulada como ela só, quanta displicência e quanto descaso com o futuro. Gastava tudo o que recebia. Esbanjava à vontade. Colocava a culpa na prestação do carro e na mensalidade do curso superior feito por ela. Tudo mentira. Ela vivia fazendo festas e cantando. Vivia de carro para cima e para baixo. Não estava nem aí para o inverno vindouro.
Suas festas eram regadas a comida e a bebida de excelente qualidade (sem falar na quantidade) e cada convidado que ia embora levava alguma coisa: um prato disso, um prato daquilo. Ela dizia não gostar de comida amanhecida. Comida requentada lhe dava alergia, náusea.
Acabaram-se as prestações do carro e acabou-se o curso superior, mas mesmo assim a Cigarra não economizava. Daí passou a esbanjar mais. Claro, sobrava mais dinheiro.
Adorava explorar a Formiga, coitadinha, mas pelo menos ela era sempre convidada para os seus banquetes e tudo aquilo que levava para casa depois da festa acabava minimizando um pouco a exploração.
Apesar de as festas, os banquetes, os passeios de carro serem bancados pelo Cigarro, que vivia maritalmente com a Cigarra, a Formiga tinha de bancar metade das festas. Foi então que o Cigarro foi esfriando, esfriando, até se apagar de vez e sumir de casa, deixando a Cigarra sozinha com a Cigarrinha.
Chegou o inverno. A crise econômica veio junto. E o tempo das vacas magras se instaurou, fincou pé e não arredava de jeito nenhum e a Cigarra sentiu na pele a sua postura desregrada.
Começou a explorar a Formiga ainda mais. Alguém tinha de pagar por seus erros. Quando lhe dava carona, cobrava gota por gota do combustível gasto (muitas vezes só lhe oferecia carona para obter recursos). As festas se escassearam e nada, absolutamente nada mais saía daquela casa. Nada de comida. Nada de bebida, nada de nada... A Cigarra teve de mudar seus hábitos. A crise a fez adorar comida requentada.
A Formiga estava bem. Economizara para o inverno e tinha reservas. Ela tinha bom coração, mas como ajudar a Cigarra se mesmo com aquela lição ela não aprendia? Continuava comprando roupas, indo a bailes e a festas, comprando bons presentes de aniversário para todo mundo, viajando. Só a Formiga, pobrezinha, não ganhou presente bom. Em seu aniversário a Cigarra lhe deu um presentinho de um e noventa e nove. Era um golfinho que deveria ficar suspenso no ar, com cinco cordinhas amarradas nele e mais cinco ferrinhos nas pontas das cordinhas. Os ferrinhos, com o vento, batiam um no outro e faziam um barulhinho até legal, só que bem baixinho devido ao tamanho reduzido da peça.
A Cigarra era incorrigível. Tinha deixado de esbanjar com comida e bebida, mas os outros gastos costumeiros continuavam, alguns até se multiplicavam dia após dia.
Em sua última viagem prevista para durar 10 dias (estendida para 20), a Cigarra ganhou a estrada e deixou em sua geladeira algumas coisas, mas as melhores, segundo ela era um pedaço de carne bovina (Cigarra é um bicho extremamente carnívoro) e um galãozinho de iogurte de 900 ml. Deixou também as chaves de sua casa com a Formiga para que esta fosse lá de vez em quando para ver como iam as coisas e abrir as janelas para entrar sol.
Quando a Cigarra retornou da viagem, vistoriou a casa inteira e começou a acusar a Formiga de ter levado embora o seu pedaço de carne e de ter ingerido o seu iogurte que haviam desaparecido de sua geladeira. Não tinha quem a fizesse mudar de ideia.
A Formiga, claro, defendeu-se e jurou de mãos postas que não tinha cometido tal delito. Alegou inocência. Mas não tinha jeito. A Cigarra não se convencia.
A Formiga acusou-a de sofrer de amnésia. Às vezes ela acusava a Formiga de ter pegado alguma coisa sua e quando ia procurá-la direito, tinha-a guardado em outro lugar. Tudo bem que a Formiga tinha antecedentes, pois já lhe furtara um peixe de seu congelador, mas ela fez isso como uma boa ação. O peixe estava para se estragar e era um peixe grande, bonito, saboroso.
A Cigarra ficou tão obcecada em provar que a Formiga tinha culpa no cartório, querendo pegá-la com a boca na botija de qualquer maneira, que sonhou e no sonho a Cigarra pressionava a Formiga de todo jeito (só faltava tortura física, porque a psicológica já estava sendo exercida). Mas isso não estava dando certo. A Formiga parecia inocente mesmo.
A Formiga, com sua carinha de santa (só lhe faltava aureola), já estava quase convencendo a Cigarra de que aquilo tudo não passava de mais um de seus ataques de amnésia, mas antes que isso acontecesse, no sonho apareceu a Aleluia, uma vizinha fofoqueira da Cigarra que lhe disse que viu alguém entrando na casa, porém não se preocupou porque o visitante estava com as chaves. O invasor, segundo ela, tinha as mesmas fisionomias da Formiga. Ficou atenta e ouviu um bip intermitente, um barulhinho chato e contínuo que ia aumentando aos poucos. Pensou em deixar para lá, mas preocupou-se com a Cigarra e resolveu dar uma espiadinha. Chegou mais perto e viu a cena. Lá estava alguém que, da posição em que estava, não lhe era permitido ver direito, mas que se parecia, como dissera antes, muito com a Formiga. Porta da geladeira aberta, cadeira próxima à porta, lá estava o invasor sentado com os pés dentro da geladeira (não façam isso em casa, é ecologicamente incorreto), sentindo todo o frescor que emanava de seu interior e se deliciava muito com o galãozinho de iogurte todo suadinho de tão gelado, bebido diretamente no gargalo. Com o calor, vez em quando o passava pelo rosto para se refrescar mais e fechava os olhos para se deliciar, ao mesmo tempo em que abria a boca e soltava um “ah” de satisfação. Dizia a Aleluia fofoqueira que o danado do invasor se deliciava tanto com aquilo que nem se importava com o bip contínuo que a geladeira insistentemente fazia, sinal de alerta que emitia quando sua porta ficava aberta por muito tempo. Quando saiu, comadre (a fofoqueira a chamava assim), ainda levou um embrulho até bem grandinho que retirou do refrigerador.
A Formiga ouvia toda a história bem desconfiada e ante o ódio que fazia brilhar os olhos da Cigarra, foi saindo de fininho.
Quando a Cigarra se virou para cobrar as devidas explicações da Formiga, só enxergou a poeirinha da sua motocicleta sumindo no horizonte.
A Cigarra acordou assustada, banhada em suor e gritando:
– Eu sabiiiiiiiiiiiiiiiia!

segunda-feira, 16 de março de 2009

O virgem

O virgem
(Drama em três quadros ou três pronomes)
Sidnei Alves da Rocha
Advertência: Esta história contém alto teor erótico, não sendo recomendada a sua leitura a todas as idades; portanto, caberá aos pais e/ou responsáveis a decisão de divulgá-la a suas crianças e adolescentes. Aprecie com moderação!
Quadro I
Eu

Uma conversa ao telefone pode suscitar muitos mal-entendidos e conclusões precipitadas. Se formos penetras na conversa, então, nem se fala, já que ouvimos somente uma parte do diálogo caso o telefone não esteja no viva-voz.
Pois bem. Minha esposa estava ao telefone com a minha cunhada ou a irmã dela, como preferir, numa conversa aparentemente normal. Falavam sobre acasalamento de cachorros. Pelo que pude entender da fala da minha esposa, minha cunhada estava lhe dizendo que a cachorrinha dela estava no cio. Até aí, tudo bem, cachorros costumam ficar no cio de vez em quando.
O meu drama pessoal começou quando minha esposa disse:
– Pode trazer a Serena (o nome da cachorrinha da minha cunhada) sim que o Sidnei (este, no caso, sou eu) vai ficar em casa a semana inteira.
Interrompi a leitura do livro e olhei para a minha esposa com uma dúvida cruel a me afligir. Acaso quererá a minha amada que eu cruze com a cachorrinha? Espantei-me. Nunca fizera algo semelhante (acredito que, na história deste país, nenhum marido o tenha feito) e temi pela minha dignidade moral. Não havia escapatória possível, afinal, que marido em sã consciência irá contestar ou desobedecer a esposa? Cruz credo!
A conversa prosseguiu e minha esposa disse a ela que, do cruzamento, iria sair cada cachorrinho tão bonitinho.
Olhei-me no espelho e me lembrei da cara e do perfil da cachorrinha, fiz uma careta e pensei “não vai não!” Não ia dar certo, não tinha chance de dar certo. Eu sou alto e magro e ela, uma basset, comprida e baixa.
Comecei a entrar em desespero. Como iria sair daquela enrascada?
Será que teria de pagar pensão alimentícia? Veterinário? Plano de saúde?
– Isso não pode ser verdade! Isso não está acontecendo... – pensei.
Pode trazer a Serena que o Sidnei cuida sim.
Pensei em interromper a conversa. Aquilo já estava passando dos limites, já estava se tornando constrangedor para mim. De quem eu teria de cuidar? Só dela? Dela e dos filhotes? Só dos filhotes?
– O Jack vai adorar ter uma companheira. Quem sabe assim ele perde a virgindade – disse minha esposa.
Ah, está explicado! Não é para mim, é para o Jack. Tinha até me esquecido do nosso cachorrinho.
– Até mais e obrigada! – minha esposa concluiu a ligação.
Eu estava aliviado.
Quadro II
Ele

Sou um cachorro poodle, de natural tímido e não sou dado a convenções sociais, grandes baladas ou relacionamentos ocasionais.
Talvez estes fatores tenham me mantido virgem até hoje e isso é muito tempo para os padrões caninos, que iniciam a vida sexual muito cedo, já que eu tenho oito anos.
Mas nem por isso posso me queixar. Vivo feliz em minha casa. Tenho o carinho dos meus donos (papai e mamãe como costumo dizer) e gozo aqui de bastantes mordomias e privilégios.
Porém, meu sexto sentido, naquela manhã, estava me dizendo que os dias de virgindade estavam contados e que em breve eu iria perdê-la (ou não). Dito e feito.
Lembro-me bem da sua chegada. No início da tarde de um dia qualquer parou um carro no portão de casa. Um homem desceu (eu o conhecia), abriu a porta do lado do passageiro e arrastou para fora uma cachorrinha. O portão não me deixava enxergá-la direito e uma fina chuva estava começando.
Meu dono foi até o portão, conversou alguma coisa com o homem, pegou na cordinha que amarrava a cachorrinha e a trouxe para dentro.
Minha língua fremia.
Ela foi solta e eu cheguei mais perto para vê-la melhor.
Nossa, ela era linda, do jeitinho que eu gosto. Pêlos curtos e avermelhados. Muito simpática em toda a sua extensão.
Sabe, pêlos curtos me excitam.
Acho que foi amor à primeira vista. Fiquei encantado por ela. Era só nos conhecermos melhor e iniciarmos um relacionamento amoroso.
– Espero que ela não seja fácil – pensei – que não queira... que não queira... (ah, você sabe!) já de cara. O diálogo para mim é fundamental.
Ai, ela tá fazendo xixi e olhando para mim. Mau sinal. Está dando a entender que está disponível.
Vixe! Me deu uma vontade de fazer xixi também. Que vergonha! Vou ter de fazer. Não queria deixar transparecer que sou virgem. Pensei entre dentes e com as perninhas cruzadas e bem apertadas. Nossa, não vai dar pra segurar. Se não fizer agora, vou fazer nos pêlos. Vou ter de me agachar. Como se levanta a patinha mesmo? Droga, isso só quando eu não for mais virgem. Que coisa mais sem graça. Não dá nem para fingir.
Pronto. O caldo já tinha entornado. Bola pra frente e...
Ela começou a se esfregar em mim!
Ela é fácil. Assim fica difícil. Será que todas são afoitas desse jeito? Nenhuma vai querer conversar primeiro? Puxa, tenho sérios problemas com estas investidas assim, tão efusivas. Elas não combinam com o meu jeito reservado.
Vamos ver no que dá. Vou cheirá-la para ver se está no cio. Hum... parece que está.
Ai meu nariz! Cuidado com o rabo! Ai! Ui!... Cinco rabadas na ponta do nariz e quatro no olho, em sequência, ninguém merece.
Espera aí! O que vou fazer com o rabo dela na hora H? tenho de achar um jeito de pô-lo de lado.
Gente, que horror! Ela está bebendo água empoçada da chuva! Que nojo!
Lá vem ela de novo. Como estava mesmo no manual? Ah, sim! Subir nela e ficar bombando até encaixar.
Opa, minha patinha esquerda ficou na frente. Foi mal. Vamos de novo.
Vai! Vai!
Essa cachorra é muito despoodlerada!
Lembra do manual, da parte que fala da investida e manda brasa.
Agora...
Xi, ela saiu de baixo.
Credo, não consigo controlar meu quadril. Mesmo sem ela embaixo de mim ele fica nesse vai-e-vem frenético. Tô parecendo dançarino do créu na velocidade cinco.
Tenta de novo...
De novo...
De novo...
...
Caramba, cansei!
Acho que vou deixar para amanhã. Depois de tantas tentativas, acho que não vou mais funcionar.
Preciso me deitar.
Estou com sono.
Boa noite!
...
Nossa, oito dias tentando não é fácil.
Quando ela for embora vou ter de treinar. Eu funciono, sabe? Meu problema só é pontaria.
Ouvi dizer que irão levá-la hoje. Vou insistir mais um pouquinho.
Ela está deitada na sua cadeirinha. Vou mostrar que estou a fim. Vou latir para ela se levantar.
Os latidos não estão funcionando. Vou latir mais forte. Vou vencer pelo cansaço.
Oba! Levantou-se!
Agora, vai...
Xi, não deu de novo.
Pronto, voltou a se deitar.
Latidos...
Vai.
Na trave!
Pare de se deitar!
Latidos...
U-hu!
Não é possível!
Ei, colabore, né? Fique em pé!
Puxa, chegaram.
Estão levando-a embora. Que abusados, logo agora que eu ia conseguir...
Quadro III
Ela

Sou uma cachorrinha basset, bem avançadinha e no que se refere a amor, relacionamentos, essas coisas, sou do tipo que se adapta às necessidades do meu par.
Se percebo que ele quer alguém tímida, eu sou tímida. Se percebo que ele quer alguém que parta para cima, ai sou bem afoita, mesmo sabendo que as mais saidinhas assustam os machos que se acham e querem sempre ser eles a “chegar” nas fêmeas. Muitos odeiam quando ocorre o contrário disto.
Sou bastante jovem ainda, mas já tenho experiência. Já engravidei e tive uma porção de filhotes.
Agora estou no cio novamente. Espero encontrar alguém que me preencha e que possa curtir comigo este momento tão especial.
Vivo feliz aqui. Gosto de me esfregar nos pés e pernas dos meus donos, botar minha cabecinha nos pés deles e receber carinho, mas estes estão meio escassos.
Lá vem o meu dono. Está chegando perto de mim. Ei, pare! O que está pondo em meu pescoço? Pare, vai me enforcar...
Não, calma, é só uma coleira com uma cordinha.
Oba! Vão me levar para passear! Espero que seja bem legal!
Que chique, bem! O passeio é de carro! Isso não é para qualquer cachorro.
Meus olhos não alcançam as janelas. Não consigo enxergar nada daqui de baixo. Pra onde estou indo? Pronto, já parou.
Estão me tirando do carro. Acho que é por aqui que eu fico.
Que casa é essa?
Vão me deixar aqui só, será? Não quero ficar sozinha neste lugar estranho. Não me puxe, não quero ir, não quero! Pronto, já me arrastou.
Ah, eu conheço aquele casal que está na varanda. O homem está se aproximando. Que chato, começou a chover. Eu prefiro sol. É mais caliente.
Ele pegou minha cordinha e está me levando para dentro. Vou ser simpática, abanar o rabinho e lamber os seus pés.
Será que meu dono não vai entrar? Ai, parece que não. Só faltava essa, já foi embora. O jeito é me conformar.
Estão me soltando. Acho que vão me tratar bem. Este casal é bem legal.
Nossa, que cachorro lindo. Agora que o vi.
Linguinha rosada, pêlos negros e longos, do jeitinho que eu gosto. Isso me excita de um jeito!
Está chegando mais perto. O que eu faço? Vou mostrar que estou no cio. Vou fazer xixi e deixá-lo me cheirar.
Será que não vou parecer muito fácil? Não seria melhor fazer jogo duro e deixá-lo correr atrás de mim como um cãozinho sem dono?
Ele também foi fazer xixi. Ai, é virgem. Não ergueu nem a patinha.
Acho que dar uma de fácil foi a melhor estratégia.
Ele está vindo. Me cheira, vai. Vou abanar o rabo para demonstrar simpatia.
Xi, desculpe, foi mal. Acho que acertei o focinho dele. Aí, de novo... Tadinho.
Nas primeiras investidas vou sair de baixo dele só para não dar muita bandeira. Depois eu deixo numa boa.
Que engraçado, o quadril dele parece de mola!
Isso, assim. Só tira a patinha da frente.
Ele não está conseguindo.
Vou ter de ajudar.
Puxa, estou me encostando o que posso em você. Que mais quer que eu faça?
Vai, agora.
Você pode. Já vai conseguir.
Isso!
Hum...
Vamos, lá.
De novo.
U-hu!
É, não deu de novo.
Ué, aonde ele vai?
Assim não dá, desistiu.
E como eu fico nessa?
...
Depois de oito dias minhas costelas estão me matando. Não há esqueleto que aguente um mala desses subindo e descendo dia e noite.
Vou é descansar na minha cadeirinha que eu ganho mais, já que não tá rolando mesmo.
Que cara chato. Sabe que não está conseguindo e fica latindo na minha cara.
Vá lá, sujeito. Vou me levantar, mas nem vou descer da cadeira. Só vou me virar.
Eu sabia. Não deu certo.
Acho que já chega. Preciso dormir. Mas como? Com estes latidos é impossível. Vou me posicionar novamente e fazer suas vontades. Ouvi dizer que vou embora hoje mesmo.
Vai.
Agora.
Ta quase lá (às vezes um incentivo ajuda).
Meu dono chegou. Será que vai me levar embora?
É, já está me levando.
...
Apesar de tudo, acho que vou sentir saudades dele. Acho que me apaixonei!

Eterno Aprendiz

Eterno Aprendiz
Sidnei Alves da Rocha
“...Viver
e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
a beleza de ser um eterno aprendiz.
Eu sei
que a vida devia ser bem melhor
e será
mas isso não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita....”
(Gonzaguinha)
Somos sabedores que os professores, aliás, qualquer profissional, devem estar em constante atualização para aprimorar seus conhecimentos e trocar experiências com outros colegas. Pensando nisso, foi promovido o 1º seminário de aprimoramento para professores de Língua Portuguesa e Matemática em Mato Grosso, denominado “Eterno aprendiz”.
Eu e mais duas colegas de Letras nos inscrevemos para mais esta aventura da língua que se realizou em Sinop, distante 160 km de Terra Nova.
Tínhamos três opções de largada. A primeira seria matar o início do curso e sair bem mais tarde. Essa foi descartada logo de cara, pois um samurai da língua não se entrega assim, tão facilmente. A segunda era sair no dia anterior à abertura do curso, dormir bem à noite e iniciá-lo bem descansados. Também descartada. Seria fácil demais. Já a terceira, mais radical, louca e própria de heróis, nacionais, claro, foi a eleita pelo trio: sair no dia do curso, no ônibus das três e trinta da madrugada para pegar o início do curso às 7 horas.
À noite comecei a pensar na viagem da madrugada e só consegui me deitar às 23h 30 e o despertador foi programado para me acordar às 2h 30.
Para a minha esposa e para mim, sem problema, mas meu cachorrinho poodle estranhou muito, pois desta vez foi tudo diferente. Ele, que está acostumado a me acordar para o levar ao banheiro, feito que realiza dando uma volta em torno da cama e choramingando ao meu lado e, caso eu não acorde com seu lamento canino, ele arranha a madeira da cama até me despertar, foi despertado por mim antes da sua hora de costume.
Mesmo estranhando, meu cachorro não disse palavra.
Saí de casa às 3h15. Encontrei-me com minhas colegas linguarudas na rodoviária e ficamos por lá, de bobeira (e quem não fica bobo com sono?) até o ônibus chegar e este, para variar, chegou atrasado e só conseguimos embarcar às 4h.
Minhas colegas entraram e exigiram suas poltronas que estavam em posse de outros passageiros, coitados, bruscamente acordados pelo estresse de quem madrugou.
Embora houvesse um senhor sentado, ou melhor, esparramado em minha poltrona que era a da janela, resolvi não o incomodar e sentei-me na poltrona do lado. Olhei-o melhor e percebi que ele era bastante gordo, não possuía um odor muito agradável e, para completar, começou a roncar como um porco.
Aguardei um instante e me mudei para uma poltrona mais à frente.
Depois de acomodado e menos incomodado, comecei a refletir e cheguei à conclusão de que o homem é um eterno aprendiz, que ele aprende até nas adversidades. Já pensou se eu tivesse exigido os meus direitos e pedido ao homem que desocupasse a “minha poltrona”? Teria ficado preso àquele canto e nunca mais sairia dali.
Ocorreu-me então uma vã filosofia que diz que nada é tão ruim que não possa piorar. Não piorou.
Ah, o curso? Bom, isto fica para outra oportunidade, pois ele dá outra ou muitas histórias.
Quanto ao retorno, não quero tecer previsões. Prefiro confiar no ditado popular que diz que “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.”

Estranho no ninho

Estranho no ninho
Sidnei Alves da Rocha
“Ver eu não vi.
Eu ouvi falar.
O que eu faço é contar.”
Extraído de um programa do Canal Futura
O copo chegou e foi posto no armário.
Causou estranheza.
Foi ficando, foi ficando, até que se quebrou na pia, transformando-se em incontáveis pedacinhos.
Houve profunda tristeza entre as xícaras.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Atalhos

Atalhos
Sidnei Alves da Rocha
Quando o moço do cerimonial anunciou os nomes do terceiro e do segundo colocados, não lhe restou mais nenhuma dúvida de que ele seria o grande vencedor da noite. Ele concorria na categoria “Produção/Edição de vídeo”. Poderia ter concorrido nas outras também, mas mudaram as regras do jogo e disseram que cada concorrente deveria participar em uma única categoria.
A categoria de Produção e Edição de Vídeo, para ele, era uma barbada, mas, mesmo assim estava apreensivo. Sempre há a possibilidade de se fazer marmelada, de se tentar beneficiar um ou outro. Ele era fera em programas de computação, reconhecidamente o melhor, por isso as mudanças nas regras. Não queriam que ele ganhasse todos os prêmios. E isso era certo.
– E o grande prêmio vai para...
Seu coração bateu mais forte, suas pernas deram uma leve bambeada e ele sentiu uma quentura no rosto.
Tinha a certeza da vitória, mas mesmo assim ficou ansioso. Todos ficam. Ninguém consegue se controlar.
A demora em abrir o envelope foi longa e isto o deixava mais nervoso ainda.
– ...Gigabyte da Silva.
Ele explodiu de emoção ao ouvir o seu nome pronunciado pelo moço do cerimonial e em meio a aplausos levantou-se e saiu da sua cadeira em direção ao corredor. Estava perto da parede e se demorou a alcançá-lo, tendo de pedir licença várias vezes.
Os aplausos cessaram-se assim que ele atingiu o corredor e começou a percorrê-lo em direção ao palco.
Ouviu cochichos e risadinhas. Falavam do seu nome e o satirizavam.
Sentiu-se envergonhado, diminuto.
Quanto mais caminhava, mais o palco parecia se distanciar dele e esta sensação aumentava a sua tortura.
Os comentários se multiplicavam e as risadinhas se emendavam umas nas outras e soavam como gargalhadas.
Ele se sentiu um nada e desejou ter na vida os mesmos recursos que se tem na hora do trabalho, na frente do computador. Ele desejou somente duas teclinhas bem próximas uma da outra “Control Z”. Seriam só dois cliques e as risadinhas e os comentários e até mesmo o seu nome seriam deletados. Mas isso só era possível no PC.
Ele próprio não gostava do seu nome. Já tentara mudá-lo várias vezes, mas disseram-lhe que isso não era possível.
Indignou-se. Conhecia tanta gente que mudara de nome. Sabia de histórias de amigos que num piscar de olhos conseguiram resolver este problema que carregavam desde muito tempo e que era motivo de chacotas, piadinhas sem graça e humilhações. Quantos e quantos casos ele conhecia pesquisando na Internet. Mas por que logo com ele não era possível? Exigiu explicações e elas lhe foram dadas.
O cartorário reconheceu que o nome era mesmo muito estranho, mas disse-lhe que não sabia se seria possível a alteração. Pediu-lhe licença e foi discutir com os colegas de repartição sobre as reais possibilidades. Não chegaram a consenso algum. Dirigiu-se ao chefe e, em questão de minutos veio com a decisão definitiva e irrevogável. O homem lhe explicou direitinho os motivos.
Gigabyte saiu do cartório. No caminho para casa ainda se lembrava das últimas palavras do cartorário martelando em sua cabeça:
– Se o problema estivesse no nome – dizia ele – tudo bem. Porém, não se muda o sobrenome. É como o pai e a mãe biológicos: você os tem para toda a vida. É impossível trocar.
Achou melhor se conformar. Teria de carregar o estranho “da Silva” para o resto da vida.
Finalmente alcançou o palco. Estava gelado e suava frio.
Passaram-lhe a palavra e disseram-lhe para não se preocupar que no começo o microfone assusta mesmo. Mas quem disse que ele tinha problemas com o microfone? Dominava-o muito bem e discursava com maestria.
Recebeu o prêmio bastante constrangido. Disse algumas palavras e foi ovacionado.
A premiação lhe trouxe um pouco de alento e ele conseguiu recuperar boa parte de sua auto-estima.
Mergulhou de cabeça no trabalho.
Na intimidade ele era conhecido por GB.
Sua mulher o chamava sempre:
– GB, venha tomar seu café da manhã!
Ele respondia:
– já vou – e não ia.
Continuava trabalhando. Nem via o tempo passar.
Gigabyte tinha um estúdio em casa. E a cada dia que passava recebia mais e mais trabalhos. Todo mundo reconhecia o seu excelente desempenho profissional.
Cometia erros como qualquer um, mas quando isso acontecia, lá vinha o Control Z e tudo era desfeito.
Aliás, os atalhos eram outra grande especialidade sua. Control combinado com P, G, C, V, A... Ele era craque nisso. Mas não tinha jeito. O Control Z era o seu favorito.
Depois daquela noite da premiação, jamais deixou de desejar usá-lo no dia-a-dia, na sua vida prática. Desfaria todos os problemas, todas as burradas, todas as humilhações que sofria. As discussões acaloradas com o chefe seriam desfeitas num piscar de olhos, antes mesmo de ser despedido.
– GB, venha almoçar! – sua mulher insistia.
E lá vinha o conhecido “já vou” e nada de ir.
E assim se sucedia: “GB, venha jantar”. “GB, venha dormir”. “GB, hoje é dia do nosso sexo mensal”. Aí ele ia.
No dia seguinte a mesma rotina. E assim virava semanas, meses, anos...
Gigabyte parecia se nutrir da mesma energia que alimentava o computador. Era uma simbiose. Ele alimentava os programas e era alimentado por eles.
Word, CorelDraw, Movie Maker, Point, Áudio e Vídeo etc, etc, etc, não tinha ação que ele não executava.
Subitamente, após um dia inteiro de trabalhos extenuantes, GB começou a sentir algo estranho no cérebro. Uma transformação aparentemente se processava ali. Podia já sentir a mudança. Aquela alteração não lhe era familiar. Fechou os olhos e olhou para dentro de si. Viu em seu cérebro um teclado que continha apenas duas teclas, Ctrl Z. E ele se deliciou.
– U-hu! – deixou escapar.
Não sabia exatamente se funcionariam, mas não tardou a descobrir.
Sua mulher gritou da cozinha:
– Droga, o arroz queimou! Se tivesse desligado o fogo cinco minutos antes nada disso teria acontecido.
GB fechou os olhos e, telepaticamente, deu dois cliques e tudo se desfez e o cheiro de arroz queimado se dissipou no ar como mágica.
Passou a ter o controle da situação, verdadeiramente dono e senhor dos seus atos.
Uma palavra mais ríspida, uma briga, uma discussão com o chefe ou com quem quer que fosse, era só apertar as teclas Control Z e tudo se desfazia.
E ele conheceu a paz.
Já não precisava mais fechar os olhos para acioná-las, pensava e pronto, estava tudo desfeito, tudo resolvido.
O tempo foi passando e já era chegado o momento de mais uma entrega de premiação aos melhores da computação. Foi se inscrever e quis concorrer em todas as categorias, mas lá vinha a regra mudada no meio do caminho de novo.
– Só pode se inscrever em uma categoria – disseram-lhe.
Não teve dúvidas. Control Z e a regra voltou a ser como antes.
Ganhou todas as estatuetas, ou melhor, ficou em primeiro lugar em tudo.
A cada vez que o cerimonial pronunciava o seu nome e os comentários e as risadinhas se iniciavam, Ctrl Z neles e o silêncio reinava, só ficava a admiração da plateia.
Na última entrega de prêmios da noite, na categoria mais importante que ele ganharia pela segunda vez consecutiva, o cerimonial o chamou e disse que ia quebrar o protocolo. Aí ele não aguentou e usou as teclas Control Z despachando o cara não se sabe para onde. Ninguém mais o viu depois daquela noite. GB nem precisou usar as teclas para desfazer as piadinhas, as risadinhas e os comentários. Todos se levantaram e o aplaudiram por quase meio hora. A platéia também não estava mais aguentando aquele mala do cerimonial.
Segunda-feira de ressaca merecida após um fim de semana de glórias para Gigabyte, mas mesmo assim ele trabalhava em seu estúdio. Tinha trabalhos urgentes a fazer.
Trabalhava tranquilamente, apesar de um pouco sonolento. Súbito, começou a sentir uma comichão estranha em suas partes baixas. Seu pintinho, outrora murchinho, começou a ficar mais largo e foi aos poucos adquirindo um novo formato. Em poucos segundos já era um outro bichinho. Tinha virado um mouse.
Seus pés começaram a se afinar e a se alongar. Ficaram quadrados e com mais ou menos dois palmos na parte da frente e um palmo na de trás. Suas pernas ficaram adormecidas, seu bumbum foi-se achatando e aumentando de tamanho. Ficou quadrado. Cada uma de suas pernas, já bastante modificadas, foi para um lado do quadrado e apareceu ali, embaixo dele, uma mesa de computador, já com o mouse em cima.
A transformação agora se processava em seu tronco, que se dividiu em dois, surgindo em seu lugar uma CPU, com nobreak e tudo. Seu cérebro desceu e foi compor a CPU.
Seus braços e suas mãos viraram duas caixinhas de som. Elas eram imprescindíveis. Usava-as muito para as suas edições.
A transformação acontecia de forma tão rápida que GB nem teve tempo de gritar ou protestar ou mesmo usar o teclado de seu cérebro. Na verdade nem sabia se o usaria para aquela ocasião. Mesmo tendo medo, estava gostando daquilo.
Seus dentes e seu lábio inferiores começaram a se alongar. Foram aumentando de tamanho. Seu queixo foi-se comprimindo e tudo foi se transformando num teclado. Ele despencou na mesa e GB ficou literalmente de queixo caído. Notou que só havia duas teclas: Ctrl Z.
Seus olhos foram se dilatando e logo se emendaram um no outro. Sua cabeça foi se achatando e ele conseguiu senti-la se contraindo. Seu rosto ficou quadrado e sua cabeça ficou bem fininha. Ela era bem grande e o conjunto da obra foi um monitor LCD de 21 polegadas de última geração.
Estava tudo consumado.
Antes que pudesse instalar em si mesmo programas para falar e ouvir – os sentimentos ainda estavam com ele – veio o seu filho pequeno e ficou olhando curiosamente aquele computador magnífico. Um grito surdo perspassou toda a extensão da sala. Faltou-lhe garganta para ser ouvido. Assustou-se, pois seu filho olhava fixamente para aquele teclado estranho e ele previu o futuro.
O menino, com dois dedinhos apenas, teclou Control Z e GB viu um túnel escuro, com uma luzinha ao fundo e ela se aproximava depressa.
GB desapareceu.