terça-feira, 23 de setembro de 2008

De sol a sol


De sol a sol
Sidnei Alves da Rocha

Domingo, dia de descanso para o justo que trabalhou duro a semana toda.
Dia de ficar em casa com a família, curtindo um bom livro, uma boa conversa fiada à sombra de uma árvore ou simplesmente ficar deitado sem nada para fazer, ou, no máximo, fazer um churrasquinho e tomar umas cervejinhas.
Mas isto não é para todos, descobri pasmado ao sair em pleno domingo para encomendar uma carne assada (súbito, fui invadido pela preguiça nesse dia). Passando de moto em frente ao antigo NTE, observo dois jovens pintores pintando-lhe a fachada. O sol estava de estalar mamona e eles estavam com caras de poucos amigos por estarem sendo obrigados a trabalhar em pleno domingo. Ocorreu-me de repente aquela frase: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
No meu trânsito, ouvi a conversa deles (ora, como os ouvi estando pilotando uma moto não interessa. Estou aqui para narrar o fato, não para dar explicações banais). O primeiro falou (parecia ser o pintor):
– Com esse sol me queimando a “mufa”, fico até transtornado.
Ao que o outro, com cara de ajudante, balbuciou:
– Pois é. E dizem que o domingo é reservado ao Senhor. Só se for ao senhor feudal. Para nós, pobres mortais, nada.
O primeiro ainda exclamou, em oração, olhando para o céu e com as mãos postas em sinal de prece, como um anjinho barroco:
“Toca, Senhor, toca o coração do meu patrão!”
Mas seu patrão não era homem de se deixar tocar assim, tão facilmente (deixa estar, ele vai ver só quando chegar aos 40. Dizem que nessa idade tem gente que é “tocada” e que, ao invés de voltar para o “toque” uma vez por ano, como é o recomendado, comparece todo mês e exige ser “atendido”).
O tempo foi passando e a dupla tinha a missão de pintar na fachada “NTM – Núcleo Tecnológico Educacional Municipal” e já haviam escrito “NTM – NÚCLEO” e já se preparavam para escrever “TECNOLÓGICO” quando, ao olharem para a casa vizinha, de onde vinha um cheiro delicioso, observaram um grupo de pessoas beliscando um churrasquinho e bebericando uma cerveja.
Ninguém merece tudo isso. O sol queimando-lhes o crânio, o cheiro de churrasco invadindo suas narinas e a cerveja estupidamente gelada nas mãos daquelas pessoas fizeram com que eles se enlouquecessem. Veio daí o pior do domingo, a “vídeo cacetada”, o “acredite se quiser”, ou simplesmente o “nossa!”
Com tantas coisas boas escritas com c e com qu na cabeça, eles ficaram na dúvida a respeito da escrita correta de “Tecnológico” e tascaram na fachada a palavra escrita com o dígrafo qu que, em letras garrafais, ficou linda “TEQUINOLÓGICO” (pelo menos o acento estava lá).
Observaram, observaram e não gostaram da primeira sílaba “TE”, apagaram-na em seguida. O resto permaneceu como estava e ficou “lindo, bicho!” “NTM – NÚCLEO QUINOLÓGICO”. Em seguida, depois de mais uma boa olhadela, foram para suas casas com a consciência do dever cumprido.
Foi aí que o inferno começou, não para eles, mas para o chefe.
Sem querer eles se vingaram de seu patrão hitleriano que não conseguiu sequer almoçar direito devido aos inúmeros telefonemas dos letrados de plantão alertando-o sobre a pane gramatical do domingo.
PS: Escrevi o texto só na segunda-feira. Ninguém é de ferro. Cronista também descansa aos domingos.

Vizinhos indesejáveis


Vizinhos indesejáveis
Sidnei Alves da Rocha
Existem inúmeros seres que padecem por causa das atitudes incorrigíveis de seus semelhantes. É como uma sina, uma marca, uma mancha difícil de ser arrancada, mudada ou apagada.
Ele era um desses, bem educado, letrado nas melhores escolas da região.
Sempre foi avesso à violência. Era casado e já tivera uma infinidade de filhos, todos com a mesma companheira, o que demonstra sua tão elogiada fidelidade.
Muitos de seus filhos enredaram-se pelo caminho do mal e espalhavam picadas aos quatro cantos da cidade. Ele, porém, fiel a sua educação quase religiosa, usava sua picadura somente em sua amada, levando-a a gozos múltiplos e intermináveis.
Moravam no quintal de uma casa em uma cidade do interior de Mato Grosso, num lugarzinho bem gostoso que fora ardilosamente arquitetado pelo seu morador, proprietário daquela residência. Em uma espécie de tanque de concreto que era usado para matar a sede do cachorro, o homem pôs uma boia a fim de manter a água sempre fresca e límpida. O cão bebia a água, a boia descia e o tanque se enchia novamente.
Ele e sua esposa moravam sozinhos e encontraram bem embaixo da boia um aconchego ideal, bem molhado como era do gosto do casal.
Ele era naturalizado. Era um egípcio de nome Aedes, um mosquito bastante alegre e apaixonado por sua companheira e pela vida.
Morriam de medo quando o cachorro vinha matar a sede próximo a sua morada. Aquela língua rosada lambendo a água deixava-os em pânico, mas não foi isso que acabou com a felicidade do casal.
Um dia uns mosquitos com diversas passagens pela polícia, moradores em outros bairros da cidade, chegaram para infernizar suas vidas.
Invadiram a casa daquelas pessoas e as picaram, para, em seguida, fugirem em estrondosa revoada.
Os moradores caíram doentes. Haviam contraído dengue dos invasores.
Receberam a visita de parentes moradores em uma cidade vizinha que, vendo-os acamados e sabendo do mal que lhes fizeram, resolveram realizar uma busca para ver se achavam os meliantes que praticaram aquela atrocidade com os seus.
Procuraram em todos os cômodos da casa. Vasculharam vasos de plantas, saliências, fissuras e todo o quintal, cantinho por cantinho, mas nada encontraram.
Na manhã seguinte, um belo sábado de sol, Aedes e sua companheira despertaram, tomaram um banho e fizeram amor como se o praticassem pela última vez.
Após a tranquilidade ter-se estabelecido, ela dirigiu-se a ele:
– Pai, temos de ir ao mercado!
– Acho que não vou, mãe, não estou me sentindo muito bem. – respondeu-lhe Aedes. (Aquela velha história de os casais com filhos tratarem-se assim. Não sei como as relações sexuais ainda eram constantes naquele lar, já que, intrinsecamente, deve ficar aquele complexo (de Édipo, talvez) e a pergunta martelando o inconsciente: “como é que alguém vai “comer” a própria mãe ou o próprio pai?”)
Ela se trocou e foi às compras. Aedes permaneceu em seu ninho de amor, alegando não estar se sentindo muito bem.
Desconfiou de febre amarela ou dengue, entretanto, lembrou-se de que não tivera contato com nenhum outro ser nos últimos meses, com exceção de sua esposa.
Achou que não era nada e se recolheu para debaixo da bóia e pôs-se a descansar, pensando no infinito amor que nutria por sua doce e adorada companheira de longas datas.
Ouviu vozes. Eram eles que tinham voltado ao quintal para continuarem as buscas.
Pelo reflexo na água, percebeu que as pessoas estavam observando o bebedouro do cachorro e, aflito, encolheu-se em um canto.
A cara de uma galega foi-se aproximando da água. Ela olhava detalhadamente todo o recipiente.
O pânico tomou conta de Aedes e ele temeu que sua tremedeira estivesse fazendo a boia vibrar.
De repente, não mais que de repente – como diria o poetinha – o rosto da galega posicionou-se bem embaixo da boia e ela começou a correr os olhos com cuidado por toda a sua extensão, indo na direção de Aedes.
O inevitável aconteceu. Os olhos dela fixaram-se nos seus e encaram-se por alguns segundos que lhe pareceram uma eternidade. Os olhos da galega feriam como chicote.
Finalmente ela exclamou:
– Foi você!
Ele, por sua vez, alegou inocência e implorou misericórdia.
Não obteve sucesso.
Trêmulo, remexeu no bolso interno de sua asa enquanto ela o observava com curiosidade.
Aedes tirou de lá um atestado, com CRM e tudo, assinado por um médico da região no qual constava que ele estava limpo. Ela, porém, mais uma vez não lhe deu crédito, acusando-o de forjar tal documento.
O pânico invadiu de vez o seu corpo e ele começou a roer as unhas, todas de uma só vez. O sangue jorrava palas pontas de seus dedos, mas esta dor era ínfima diante do que lhe havia reservado o destino.
A mulher sorriu e apanhou sua sandália de borracha. As havaianas estavam ávidas por sangue.
– Chegou o meu fim? – interrogou-se Aedes.
A galega aplicou-lhe um golpe perfeito bem no meio do corpo, jogando-o contra uma parede.
A dor que sentiu foi descomunal.
Sua asa esquerda estava separada do corpo e sua asa direita estava em frangalhos. Suas pernas estavam quebradas. Passou-lhe pela cabeça que, se se livrasse daquela enrascada, daria muito trabalho a sua amada, pois, com certeza, ficaria tetra, penta ou mesmo hexaplégico.
Olhou para o seu corpo e notou que sua razão de existir não estava mais lá. Seu ferrão desprendera-se com a pancada. Notou que as pessoas se aproximavam. Brotou-lhe um fio de esperança. Em seu imenso delírio, chegou a acreditar que elas ainda pudessem socorrê-lo.
Não sentiu mais o corpo.
Uma paz enorme o invadiu e ele se viu em um túnel escuro. Viu no fim desse túnel uma luz e começou a caminhar em direção a ela. A luz aproximava-se depressa e agigantava-se diante de seus olhos.
Em seguida tudo se apagou.
As pessoas o rodearam e a galega deu-lhe um pontapé no meio das costelas, abaixou-se e tomou o seu pulso.
Estava morto.

Tecnologicamente falando...

Tecnologicamente falando...
Sidnei Alves da Rocha

Ah, a tecnologia...
Como viver sem ela?
Foi ela quem proporcionou a evolução do rádio, da televisão, da Internet... É através destes meios de comunicação que nós, reles mortais, temos acesso a ideias ultramodernas e revolucionárias de filósofos fabulosos como uma Tati Quebra Barraco, um MC Serginho... É por meio deles que esses pensadores poderosos, atuais e de grandes conhecimentos culturais, científicos, sociais e, principalmente, sexuais nos trazem créus, cachorras, cerol, tapinhas, eguinhas, cavalinhos e pocotós.
Nossa! Isso tudo me deu uma saudade dos meus tempos de menino lá no interior do Mato Grosso do Sul. Tempos difíceis aqueles...
Naquela época nossa casa não tinha energia elétrica, mas o sistema de iluminação da residência era dotado de alta tecnologia. O utensílio utilizado tinha o nome de lamparina. Dentro dela havia um tecido longo que percorria todo o seu corpo e sua ponta ficava fora dela, numa espécie de bico.
Seu mecanismo de funcionamento era superinteressante. O que o acionava era um sistema operacional chamado “fósforo” que, quando friccionado e encostado no bico da lamparina, liberava uma substância que atendia pelo nome de “querosene”, que, imediatamente escalava o tecido por toda a sua extensão e, em contato com o fósforo, como num passe de mágica, acendia-se.
Esse sistema era bem prático, portátil e pequeno. Podíamos levá-lo aonde quiséssemos.
Também tínhamos um grande rádio de pilha que nos trazia notícias do mundo, músicas e novelas (quanta imaginação, quantos cavalos, tiros, correntes, mocinhos e bandidos). À noite nós o ligávamos e nos sentávamos em cadeiras de corda no terreiro. Ouvíamos os programas e olhávamos o céu. Observávamos as estrelas e, de repente alguém dizia “olha o apareio!”. Traduzindo do caipirês: aparelho – traduzindo mais ainda: avião a jato. Como nossa imaginação voava. Mal sabia eu que aquele “aparelho” fora inventado por Santo Dumont, um brasileiro lá de Minas, sô. Vixe, bateu uma nostalgia maior do que a que estava sentindo... Essa atmosfera rural, essa pasmaceira, essa calma... Lembrei-me de Drummond, daquele poema que retrata bem a minha infância, Cidadezinha qualquer:

"Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.”

Nós, como Santos Dumont, voávamos e imaginávamos tantas coisas, tantos mistérios naquelas noites estreladas.
Mas outra tecnologia entrou igual a um foguete em nossas vidas anos mais tarde; a televisão.
Ainda não tínhamos energia, porém nosso vizinho de sítio comprou uma TV preto e branco, fabulosa, de umas 8 polegadas e, para ela funcionar, usava uma bateria. Uau! Tecnologia de ponta!
Nós, para não perdermos mais esta novidade, plugados em alta tecnologia como éramos (praticamente uns “nativos digitais”), fomos ver de perto a novidade e apreciar a sua programação.
Éramos sete neste grupo: este corajoso que vos fala, minha mãe, minhas três irmãs, meu irmão e sua esposa.
Só que, para chegar até ela, tínhamos de andar cerca de dois quilômetros atravessando terras cultiváveis e pastagens. Entremeio nossa casa e a casa da televisão havia um rancho que diziam ser mal-assombrado. Segundo o povo, aparecia por ali uma mulher toda de branco. Como passávamos à noite, nossos corações batiam acelerados. Na ida, tudo bem. Passamos ilesos. Mas na volta...
Conseguimos passar pelo rancho, ufa!
No entanto, uns 500 metros à frente, minha irmã mais velha resolveu olhar para trás e ao lado do rancho, vislumbrou um vulto que vinha nos seguindo. Estando com passadas normais, minha irmã começou a acelerar

“Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô...

Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô......”
De repente estávamos todos correndo.
Meu irmão, que teoricamente deveria proteger o grupo, estava grudado na mão de sua esposa a uns dois passos a sua frente (se ela o soltasse, nunca mais o veríamos), porém, contrariando a sua falta de coragem, ele dizia “me solta, me solta que eu volto lá”. Palavras ao vento. Se ela realmente o soltasse, era capaz de ele morrer do coração ou pelo menos pedir o divórcio. A mulher também deve proteger o marido.
Minha mãe, tadinha, fora de forma e com uma certa idade, corria como um atleta olímpico.
Minha cunhada também corria muito. Perdeu os chinelos e bem mais precioso: o filho que esperava.
Minhas irmãs estavam bem à frente e eu, para não contrariar o grupo, corria também.
Ao chegarmos à estrada principal, resolvemos parar e encarar o “fantasma” de frente, com exceção de minha irmã mais velha que continuou em enorme disparada.
Ele foi se aproximando, se aproximando... Suas feições pareciam familiares. Quando nos preparávamos para o pior, percebemos que, quem se aproximava era outro dos meus irmãos, coitado, também sem fôlego. Novamente meu irmão casado tomou a palavra e esbravejou “vo-você n-num t-tem vê-ve-vergonha, n-não!?
Os outros estavam sem fala, inclusive o “fantasma”.
Enquanto isso, minha irmã mais velha conseguiu chegar até a nossa casa e, inexplicavelmente, abriu a tramela, por fora. Chamou meu pai e logo logo eles apareceram para nos salvar. Meu pai empunhava um machado.
Nós nunca mais quisemos voltar.
Mas, enfim, a energia elétrica chegou.
Outro irmão meu (ora, não encha! Tenho seis irmãos e três irmãs e posso chamá-los de outro / outra quando quiser – lembrar o nome de todos eles é difícil) que se casou, construiu uma casa perto da nossa, no mesmo sítio, e comprou, de segunda-mão, uma televisão colorida.
Que empolgação!
Quando eles saiam para trabalhar, deixavam as chaves da casa com a minha mãe para ela poder assistir às novelas da tarde. Eu, claro, ia junto.
Aquela TV tinha um pequeno problema: quando a gente ia mudar de canal, às vezes levava um baita choque. Um dia fui ligá-la e o choque estava lá. Fiquei tão traumatizado que tenho formigamentos até hoje. Minha mãe, como São Tomé, só acreditou vendo e meteu a mão no botão. Levou um choque, lógico. Recuou e disse-me carinhosamente, daquele jeito que só as mães conseguem quando querem enaltecer a inteligência do seu filhinho querido “desliga isso, besta! Vambora!
Não desliguei. Peguei um pano e mudei de canal e conseguimos assistir à novela, um dramalhão mexicano intitulado “Os ricos também choram”. Jesus, se as novelas deles que não têm choro no nome já são uma choradeira só, imaginem essa?
Passou-se o tempo e hoje sei que tenho uma relação bem mais tranquila com a tecnologia. Fiz cursos on-line de TICs, tenho blog e tudo o mais.
Sei também que sou um “imigrante digital”, não um “nativo digital” como dissera outrora, mas tenho aprendido e venho aprendendo. Não custa sonhar, como Dumont, na construção de seu 14 Bis.
Espero navegar bastante.
Afogar, jamais!