sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

O Julgamento


O julgamento
Sidnei Alves da Rocha

Não sei ao certo o que aconteceu (nem sei ao certo o que acontecia naquele momento), mas lembro-me perfeitamente bem de que estava no meio de uma multidão que gritava enlouquecida.
Havia uma espécie de palco e fui me aproximando dele, espremido pela multidão. Consegui chegar bem na sua frente.
Olhei para o lado e vi mais nove companheiros meus lá do meu trabalho, inclusive o pessoal do grupo de formação. Estávamos todos vestidos com roupas superestranhas. Todos nós usávamos saias. Sei lá. Pareciam saias.
Havia um homem no palco.
– Pilatos! – alguém exclamou do meu lado.
Olhei espantado para ele.
 – Pilatos – repeti baixinho.
Era mesmo.
Usava sandalinha básica e minissaia. Hum...
Pilatos disse:
– Tenho aqui a minha direita um Galileu e a minha esquerda o meliante Barrabás.
Após uma pausa, concluiu:
– Quem vocês acham que devo soltar?
Ninguém respondeu.
Você acha que uma viva alma no meio daquela multidão iria se comprometer?
– Quem eu devo soltar? O Galileu ou Barrabás? – Pilatos insistiu enfurecido.
Diante da fúria, meus nove companheiros de trabalho e eu respondemos:
– Barrabás! Barrabás! Barrabás!
A multidão permanecia em silêncio.
Após uma longa pausa, Pilatos, agora se dirigindo à multidão, perguntou:
– Devo soltar o Galileu?
A multidão continuou sem responder. O silêncio a esta altura era gritante.
– Quem aqui concorda com estes dez que querem que eu solte Barrabás?
As pessoas sequer respiravam. Ninguém quis se intrometer. Sequer um dedinho fora levantado.
– Já que Barrabás obteve dez votos – disse Pilatos – eu o soltarei.
Pilatos virou-se para nós e questionou:
– Vocês acham que este problema é mais importante, importante ou menos importante?
Olhamo-nos por alguns segundos e, em uníssono respondemos:
– Mais importante!
– Então – voltou a falar Pilatos – vamos à análise da situação. Elaborem ação, sub-ações e responsável pela ação. Vocês têm dez minutos para fazerem isso. O problema é: Falta soltar Barrabás e crucificar o Galileu.
Desesperamo-nos. Havíamos entendido que ele estava se referindo ao nosso problema, afinal, só nós é que entregamos um e libertamos o outro.
Mas assim mesmo partimos para a resolução do problema.
Após um tempo refletindo, Pilatos nos disse que o tempo havia se esgotado e nos pediu para apresentar as nossas conclusões para a planária.
Cada um de nós segurou um papiro e expomos as nossas conclusões:
AÇÃO: Crucificar o Galileu e absolver Barrabás.
SUB-AÇÕES:
1 – Cortar árvore para a cruz;
2 – Fazer um levantamento da quantidade e do tamanho dos pregos;
3 – Fazer um estudo do local adequado para a crucificação;
4 – Firmar parceria com a marcenaria para a fabricação da cruz;
5 – Contratar alguém para o transporte da cruz até o local escolhido.
– Bom não deu tempo de pensarmos no responsável, mas tem de ser a marcenaria – comentamos.
– A marcenaria irá executar a ação. Ela não pode cobrar dela mesma. Os responsáveis pela ação devem ser vocês – bradou Barrabás, já demonstrando certa autoridade.
Olhamos com ódio para ele, mas Pilatos gostou da ideia e ficamos todos nós responsáveis pela ação.
Pilatos dirigiu-se a uma mesa no canto do palco e apanhou uma ampulheta. Virou-a e nos disse que o nosso tempo era curto. Era só o tempo de toda a areia cair.
A areia de uma ampulheta que se preze demora exatamente uma hora para passar de uma parte a outra. Este, portanto, era o nosso tempo.
Saímos dali voando.
A multidão recomeçou a gritar.
Fomos até a marcenaria e em pouquíssimos grãos de areia conseguimos convencer os dois gregos de lá, Anhaia e Chicus, se não me engano, a serem nossos companheiros de aventura.
Fomos ao mato e cortamos a árvore. Era madeira de lei. Mogno, me pareceu.
Os dois marceneiros puseram mãos à obra e logo a cruz estava pronta.
– Agora o problema não é mais nosso, contratem um camelista para o transporte – disseram-nos os marceneiros.
Não sabíamos a quem procurar, mas eles nos indicaram um camelista que não era dos bons e que, por isso, cobraria bem baratinho.
Encontramos o homem.
Ele se apresentou com o nome de Carvaliotes, um meio-irmão de Judas Iscariotes, como ele mesmo se apresentou.
Por suas características barbeiras, ele cobrou metade do preço que um camelista mediano cobraria, mas nem esse dinheiro nós tínhamos.
Possuíamos umas poucas moedas e ele as aceitou. Não dava nem um terço do preço justo.
Ele ajeitou a cruz para o transporte e já na saída derrubou uma porção de arvorezinhas. No caminho derrubou a cruz diversas vezes e, ao entrar na cidade, atropelou duas crianças e uma velhinha, mas não foi nada grave.
Quando chegamos em frente ao palco, após a multidão nos ter aberto caminho, ainda restavam alguns poucos grãos de areia na parte de cima da ampulheta.
Pilatos nos parabenizou pela agilidade, entretanto fez algumas ressalvas ao estado da cruz. Não fosse Carvaliotes, ela estaria perfeita.
Carvaliotes subiu no palco e quis se achar, só porque ele havia transportado a cruz e só porque o seu meio-irmão entregara o Galileu com um beijo, em troca de algumas moedas de ouro.
Pilatos mandou o homem “pegar descendo” e disse que ali em cima só deveriam ficar ele, o Galileu e Barrabás.
Carvaliotes fuzilou Barrabás com o olhar e lhe jurou ódio eterno, desaparecendo em seguida.
Pilatos lavou as mãos e mandou crucificar o Galileu.
Os dez companheiros de trabalho desmaiaram.
Despertei ouvindo batidas na porta. Lembrei-me do Galileu, de Barrabás e de toda aquela história, mas percebi que estava em minha cama, na minha casa e minhas roupas já não eram esquisitas (pelo menos eu gosto delas).
Levantei-me e olhei o relógio. Eram sete horas.
Fui até a porta e a abri. Deparei-me com um fiscal do IBAMA que me apresentou uma multa dizendo:
– Eu vi o mogno que vocês derrubaram dois milênios atrás. Ah, também vi as arvorezinhas que foram juntas.
Apanhei a multa que ele me apresentou. Olhei seu conteúdo. Cinquenta mil reais era o seu valor.
– Mas como? – espantei-me.
– Não se preocupe – disse-me o fiscal – você não está só nessa. Já multamos oito dos seus comparsas. Só escapou um que fugiu para a BR 80, mas já estamos no encalço dele.
O homem foi embora e eu me preparei para ir ao trabalho.
Estava bastante preocupado. Onde iria arranjar cinquenta mil reais?
Encontrei-me com os outros companheiros no corredor, cada um com sua multa na mão e resolvemos falar com o chefe.
Ao entrarmos em sua sala, ficamos boquiabertos e exclamamos em coro:
– Não é possível! Vvocê... e Barrabás... são a mesma pessoa!
Houve o segundo desmaio coletivo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Flashes na noite

Flashes na noite
Sidnei Alves da Rocha

Após um sábado de exaustivos trabalhos, o homenzinho dormia o sono dos justos.
Pegou no sono rápido. Estava demasiadamente cansado, pois passara o dia capinando e catando latinhas do nascer ao pôr do sol.
Súbito, gritos que lhe pareciam vir de muito longe o despertaram.
Não vinham de longe. Estavam bem perto, tão perto que ele conseguia sentir o hálito quente que vinha da boca daquele homem, bem ao lado de sua cama.
– Pegue suas coisas! – disse o homem – o barracão está pegando fogo!
O fogo mal havia começado e o povo da cidade já estava todo reunido para vê-lo.
Cada um procurou o melhor lugar, com o melhor ângulo para acompanhar o espetáculo.
– Olha a pipoca! Olha a pipoca! – um sujeito já gritava em meio à multidão que se aglomerava.
As câmeras da TV já filmavam tudo o que acontecia ali, passo a passo e havia sorveteiros por todos os lados. Naquela quentura, um sorvetinho caía muito bem (sem querer parodiar o “Faroeste caboclo”, do Renato Russo, mas já parodiando).
As fotos se sucediam numa sequencia louca de flashes que algumas vezes se confundiam com as chamas.
Com a passividade dos que não têm eira nem beira, uma vez que aquele quartinho não era seu, ele fazia parte do velho barracão de madeira que pertencia à prefeitura e agora servia de almoxarifado e que gentilmente lhe fora cedido para os seus pernoites, o homenzinho aos poucos foi se dando conta da situação.
Podia ouvir os estalos do fogo na madeira.
Podia sentir a quentura do fogo que já os estava cercando.
Podia perceber o desespero do homem ao seu lado.
Sentado à beira da cama, Tiozinho – era esse o nome que lhe deram – calmamente começou a dobrar as suas poucas roupas e a colocá-las delicadamente em uma pequena caixa que lhe servia de guarda-roupa.
Parecia não se importar.
Parecia não sentir calor.
Parecia não ter medo.
Mas o homem ao lado da sua cama tinha medo, aliás, estava desesperado e não sabia o que fazer.
Um estalo mais forte na madeira o obrigou a tomar uma atitude. O fogo já os cercava por completo e o homem pegou Tiozinho pelos fundos da calça e pela gola da camisa e o arremessou porta afora.
Pôs o restante das roupas na caixa e a arremessou também.
– Minha bicicleta! – exclamou Tiozinho.
A bicicleta voou pela janela.
– Pamonha! Pamonha! Pamonha! – desceu alguém berrando pela avenida.
– Aí já é demais – pensaram alguns.
Ninguém queria ficar de fora do espetáculo.
– Eu vi quando o fogo começou. Estava passando por aqui por volta das 7 da noite e só havia uma fumacinha saindo pelo canto superior do barracão – dizia um.
– Tenho certeza – jurava outro – quando passei, e isso era umas 7 e meia da noite, vi algumas faíscas saindo da fiação. Achei que era normal.
Um terceiro, convicto, salientou:
– Oito e meia começou. Eu vinha da missa. Como ia mentir?
Mas uma quarta pessoa superou as expectativas ao comentar:
– É engraçado como as coisas acontecem. Quando eu ia para o sítio e passei aqui em frente por voltas das 10 horas da manhã, olhei para o barracão e pensei “nossa, ele é tão velho. É até perigoso deixá-lo assim, sozinho” e fui para o sítio tão preocupado.
Tiozinho procurou desesperadamente por alguma coisa no meio de seus pertences, mas nada do que procurava encontrou.
– Minhas latinhas! – exclamou e em seguida entrou no quarto em chamas.
Cobrindo o rosto com as mãos para tentar protegê-lo da quentura e das faíscas, Tiozinho localizou o saco com as latinhas em um canto e conseguiu chegar até ele, recuperando-o em seguida e saindo dali às pressas.
Tiozinho continuou mexendo em suas coisas e disse ao homem que sua latinha cheia de moedinhas não estava com ele. Este era o único pertence do homenzinho que tinha algum valor.
– Preciso recuperar ela – argumentou e se moveu em direção ao barracão em chamas.
O homem o segurou com força e disse que seria impossível entrar lá.
Tiozinho, consternado, aceitou o argumento e ficou cabisbaixo, postado no meio do pátio.
Ficou só.
Todos os outros estavam fazendo alguma coisa, mas ele ficou ali, imóvel, pensando na vida.
No meio da rua um sujeito de terno e com um livro grosso e de capa escura debaixo do braço começou o seu discurso, já com uma pequena multidão a sua volta:
– Irmãos, eu vi quando um raio desceu do céu e atingiu o velho barracão. É um sinal dos céus. É o fim dos tempos. É o apocalipse...
Surgiu no canteiro central uma barraca com fachada e tudo na qual estava escrito: “Fotografia em 1 minuto”.
O homem da barraca começou a gritar:
– Compre aqui a sua recordação do incêndio. Temos fotografias para todos os gostos. São fotos pequenas, médias e grandes.
Do lado da barraca havia um panfleto com os preços. 
A última parede do barracão ruiu.
O homem da fotografia anunciou:
– Não percam! Adquira hoje mesmo e só aqui a sequencia completa do incêndio, cômodo a cômodo, num álbum exclusivo para colecionadores.
Começou a chover. Era, a princípio, uma chuva bem fina.
As pessoas foram se retirando aos poucos e em alguns minutos não restava mais ninguém nas ruas.
Tiozinho, agora, ficou totalmente só observando as cinzas e toda aquela fumaça que subia dos escombros.
Pareceu-me que o poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade fora escrito para ele:

“E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?...
...Com chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”
Agora chovia torrencialmente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto cansado e surrado pelo tempo.
A perda do que não lhe pertencia doía fundo na sua alma e o deixava petrificado.
Ficou assim por um longo tempo em meio à chuva.
Tiozinho resignou-se.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

De sol a sol


De sol a sol
Sidnei Alves da Rocha

Domingo, dia de descanso para o justo que trabalhou duro a semana toda.
Dia de ficar em casa com a família, curtindo um bom livro, uma boa conversa fiada à sombra de uma árvore ou simplesmente ficar deitado sem nada para fazer, ou, no máximo, fazer um churrasquinho e tomar umas cervejinhas.
Mas isto não é para todos, descobri pasmado ao sair em pleno domingo para encomendar uma carne assada (súbito, fui invadido pela preguiça nesse dia). Passando de moto em frente ao antigo NTE, observo dois jovens pintores pintando-lhe a fachada. O sol estava de estalar mamona e eles estavam com caras de poucos amigos por estarem sendo obrigados a trabalhar em pleno domingo. Ocorreu-me de repente aquela frase: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
No meu trânsito, ouvi a conversa deles (ora, como os ouvi estando pilotando uma moto não interessa. Estou aqui para narrar o fato, não para dar explicações banais). O primeiro falou (parecia ser o pintor):
– Com esse sol me queimando a “mufa”, fico até transtornado.
Ao que o outro, com cara de ajudante, balbuciou:
– Pois é. E dizem que o domingo é reservado ao Senhor. Só se for ao senhor feudal. Para nós, pobres mortais, nada.
O primeiro ainda exclamou, em oração, olhando para o céu e com as mãos postas em sinal de prece, como um anjinho barroco:
“Toca, Senhor, toca o coração do meu patrão!”
Mas seu patrão não era homem de se deixar tocar assim, tão facilmente (deixa estar, ele vai ver só quando chegar aos 40. Dizem que nessa idade tem gente que é “tocada” e que, ao invés de voltar para o “toque” uma vez por ano, como é o recomendado, comparece todo mês e exige ser “atendido”).
O tempo foi passando e a dupla tinha a missão de pintar na fachada “NTM – Núcleo Tecnológico Educacional Municipal” e já haviam escrito “NTM – NÚCLEO” e já se preparavam para escrever “TECNOLÓGICO” quando, ao olharem para a casa vizinha, de onde vinha um cheiro delicioso, observaram um grupo de pessoas beliscando um churrasquinho e bebericando uma cerveja.
Ninguém merece tudo isso. O sol queimando-lhes o crânio, o cheiro de churrasco invadindo suas narinas e a cerveja estupidamente gelada nas mãos daquelas pessoas fizeram com que eles se enlouquecessem. Veio daí o pior do domingo, a “vídeo cacetada”, o “acredite se quiser”, ou simplesmente o “nossa!”
Com tantas coisas boas escritas com c e com qu na cabeça, eles ficaram na dúvida a respeito da escrita correta de “Tecnológico” e tascaram na fachada a palavra escrita com o dígrafo qu que, em letras garrafais, ficou linda “TEQUINOLÓGICO” (pelo menos o acento estava lá).
Observaram, observaram e não gostaram da primeira sílaba “TE”, apagaram-na em seguida. O resto permaneceu como estava e ficou “lindo, bicho!” “NTM – NÚCLEO QUINOLÓGICO”. Em seguida, depois de mais uma boa olhadela, foram para suas casas com a consciência do dever cumprido.
Foi aí que o inferno começou, não para eles, mas para o chefe.
Sem querer eles se vingaram de seu patrão hitleriano que não conseguiu sequer almoçar direito devido aos inúmeros telefonemas dos letrados de plantão alertando-o sobre a pane gramatical do domingo.
PS: Escrevi o texto só na segunda-feira. Ninguém é de ferro. Cronista também descansa aos domingos.