terça-feira, 6 de março de 2012

Um certo poeta do chão


Um certo poeta do chão
Em Manoel, as palavras compõem silêncios. Nele, as coisas do chão como caracóis, formigas, sapos e pedras são mais “prezadas” que aviões.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O anjo


O anjo
Sidnei Alves da Rocha

Era mestre na arte de enganar.
Um dia acreditou ser um anjo, subiu num penhasco e se jogou.
Descobriu que suas asas invisíveis não existiam.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A arte da tongagem


A arte da tongagem
Sidnei Alves da Rocha

Explicações desnecessárias 1:
Tongo: 1. aquele que pratica tongagem; 2. Refere-se sempre a um sujeito (oculto ou não, mas geralmente hiper-explícito – um tongo se vê de longe); 3. sujeito que é ou está em estado de besta. Como diria o soletrando (didático e narigudo) “exemplos em frases” – “Eu sou tongo” (estado permanente – a tonguice já ultrapassou todos os estágios do id e do ota). “Eu estou tongo” (estado transitório de tonguice, com sintomas leves e passageiros) – Dicionário Epistongológico Brasileiro.
Tudo começou naquela manhã fatídica de segunda (poderia ser pior, poderia ser uma manhã de quinta). A atmosfera estava pesada. O sol estava escaldante e o calor batia picos de quase 40 graus centígrados.
O Hiato chegou em seu estado imponente de “não me toques, não me reles” e sentenciou para os três naquela sala:
“Quero que vocês me produzam um Folder C para o Convento que se realizará na semana que vem.”
Entregou-lhes um bilhete com local, data e assuntos a serem tratados nos sete dias de evento. Quer dizer, seis, pois o sétimo dia seria dedicado ao senhor Hiato e sua trupe.
Explicações desnecessárias 2:
Convento: Encontro realizado para discussão de ideias e pensamentos filosóficos, metodológicos e práticos (ou não!) a fim de se chegar a um consenso ou pelo menos afinar o discurso em torno de propostas pedagógicas (ou não!) com o intuito de melhorar (ou não!) aquilo que já está pior (ou não!).
Folder C: panfleto explicativo e sucinto que contém todas as informações básicas a respeito de determinado evento cujo conteúdo deve ser seguido à risca, com exceção dos horários, especialmente o de abertura. Vem logo após o Folder A (elaborado por todos) e logo após o Folder B (elaborado por alguns do grupo de organização). Geralmente o Folder C é elaborado por uma minoria e, assim sendo, ele é bastante piorado e não segue as decisões da maioria – Dicionário Epistongológico Brasileiro.
Nosso três anti-heróis, Tongo, Ditongo e Tritongo, entreolharam-se assustados diante de tamanha responsabilidade e começaram a correr de um lado para outro, do outro para um – atitude própria de quem é dotado de tonguice – batendo cabeça na busca de ideias a respeito do que fazer e de como fazer, já que o tempo que deram a eles era curto.
Buscaram programa de computador aqui, organizaram material ali, baixaram imagens acolá.
Ligaram para um, ligaram para outro, definiram horários e palestrantes para o Convento, tudo em conjunto com a equipe, no caso, os mais sapientes, trocando em miúdos, os menos tongos.
O desespero tomou conta dos três. O tempo estava passando e quando finalmente, depois de muito leva e traz, de muito blábláblá e nhénhénhé, o Folder C ficou pronto.
O sorriso inundou as faces daqueles três seres em êxtase. A tonguice fora finalmente vencida e ninguém tiraria deles aquela vitória.
No momento da impressão dos Folders C, a tinta da impressora acabou. Avisaram os Adjetivos Absolutos Analíticos e Sintéticos da ocorrência de tal fato e começaram a providenciar o carregamento de tinta no tonner.
Mas de repente, sem mais nem menos, sem motivo ou explicação aparente, o Sujeito Composto penetrou no recinto já dizendo que tinha recebido ordens expressas do Verbo Imperativo para levar, em CD, o Folder C elaborado pelos três tongos e completou dizendo que ele seria impresso no Plaft! Plaft! Plaft!
Boquiabertos e sem reação, pelo menos reação racional, Tongo, Ditongo e Tritongo entregaram ao Sujeito Composto o material solicitado.
Neste momento a Metáfora e o Paradoxo tentaram ajudar, mas estes eram considerados pela elite pensante... ou melhor, mandante, mega-tongos e ultra-tongos (não necessariamente nesta mesma ordem) e nada puderam fazer a respeito.
Mudaram o Folder C do jeito que quiseram, sem respeitar as decisões tomadas em conjunto (aquelas malditas mudanças feitas à revelia em gabinete só pela “nata”).
Explicações desnecessárias 3:
Nata: 1. Subproduto do leite, sendo considerada sua parte mais gorda e extremante prejudicial à saúde; 2. figurado: diz-se daquele que está por cima, que se acha intocável e insubstituível; 3. pessoa que tem o poder subido à cabeça, que acha não precisar de ninguém; 4. pessoa que se basta – Dicionário Epistongológico Brasileiro.
Foram todos para casa e, ao dormir, Tongo sonhou que estava em estado interessante, tá, vá lá, pegou bucho e pariu um lindo Tonguinho.
Acordou em pânico e banhado em suor.
Não podia continuar assim.
Tinha de ter fim.
Tinha de acabar com aquela sina.
Tinha de cessar aquele circulo vicioso, aquela Vida Tonga, aquela Vida Maria...

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Vida de cão

Vida de cão
Sidnei Alves da Rocha

O homem acordou pela manhã sentindo-se sufocado.

Aquele nó na garganta que o deixava sem ar era incomum, coisa que jamais sentira.

Passou a mão pelo pescoço e percebeu que em volta dele havia uma coleira. Enganchada nela pendia uma corrente.


Suou frio. Desesperou-se. Tentou buscar na memória alguma lembrança, mas ela não veio.

Olhou em torno de si e percebeu-se dentro de uma casa minúscula.

Procurou por sua mulher. Não a viu. Tampouco sentiu seu cheiro.

De cócoras, saiu da casa.

Viu que a outra extremidade da corrente estava firmemente entrelaçada a um arame que estava pregado a sua casa e percorria toda a extensão do quintal, ficando preso a um canto do muro.

Levantou-se e correu em disparada no sentido contrário ao arame.

A corrente se esticou e quase o enforcou, jogando-o de costas no chão duro e seco do quintal.

A falta de ar voltou e junto com ela vieram fortes dores nas costas e no pescoço.

Levantou-se, tomou uma certa distância e correu novamente, agora um pouco mais devagar.

Tentou mais duas vezes. Como resultado obteve uma maior dor nas costas, um quase desmaio e uma ferida no pescoço que latejava a cada batida de seu coração.

Na quinta tentativa um elo da corrente se abriu e ele finalmente se libertou.

Correu para o portão, encontrou-o aberto e em disparada ganhou as ruas.

Aquilo só podia ser um pesadelo. Logo que acordasse, passaria. Mas ele já estava acordado, muito bem acordado.

Dirigiu-se ao banco mais para buscar um pouco de lucidez do que para ver o saldo.
Encontrou a porta aberta e entrou.

Olhou assustado para as filas, para os caixas eletrônicos e para os clientes e funcionários do banco.

Havia vacas, touros, cachorros, gatos, coelhos e porcos, cada um portando o seu cartão de crédito ou débito.

– Quem deixou esse homem entrar? – gritou o gerente, um buldogue de terno e gravata sentado a uma escrivaninha.

O guarda, um mal-encarado pitbull, agarrou-o pelos colarinhos e o enxotou dali, arremessando-o no meio da rua.

Depois de alguns minutos no chão, o homem recuperou as forças, espantou a tontura que sentia e correu enlouquecido.

– Está louco! – gritaram – chamem a carrocinha!

Na tentativa de fugir dali, foi para o campo.

Com certeza lá toda aquela loucura se dissiparia. A volta da sanidade seria uma consequência lógica. Ares campestres transformam as insanidades em normalidades. Tudo se resolveria.

Não se resolveu.

Em uma mangueira, uma vaca ordenhava uma mulher.

Mais à frente, um porco amolava uma faca enquanto um homem cevado olhava para ele com desespero, prestes a ser sacrificado e ter a sua carne transformada em porções de filé, contra-filé, maminha... Seu couro seria frito e transformado em deliciosos torresminhos.

A loucura estava aumentando e ele, com medo de virar carne para as refeições suínas, correu em disparada rumo à cidade.

No mercado a diversidade de bichos fazendo compras era enorme. Observou que as carnes humanas eram muito apreciadas, já que esta parecia ser um item obrigatório em todos os carrinhos e cestas dos fregueses.

Definitivamente os animais haviam comido carne humana e tomado gosto pela coisa. Quem sabe estivessem pensando no churrasco de domingo.

Em uma embalagem no freezer havia testículos humanos. Diziam ser afrodisíaco.
Saiu do mercado enlouquecido e a carrocinha o capturou.

Levado ao hominil, encontrou outros como ele, mas não havia diálogo. Um rosnava para o outro, soltavam alguns grunhidos e só.

Alguns dias depois ouviu vozes conhecidas e reconheceu seu antigo cachorro que chegava com a coleira e a corrente.

Sentiu uma vontade enorme de balançar a bundinha. E assim o fez.

Enquanto seu cão o amarrava, sentia uma coçadinha gostosa em sua cabeça. Ao olhar para a perna de seu cachorro, sentiu uma vontade enorme de agarrar-se a ela.

Segurou-a com as duas mãos e começou a fazer movimentos de vai e vem. Ele não gostou e o chutou. A dor foi enorme embaixo das costelas.

Não se lamentou. Não chorou. Não sentiu raiva de seu cão. Apenas continuou abanando a bundinha em sinal de satisfação.

Foi levado para o mesmo canto do quintal, na mesma casinha, ficando amarrado ao arame.

Viu sua mulher acenando para ele. Mas ela estava presa do outro lado.

Um correu ao encontro do outro, mas suas correntes se esticaram, derrubando-os no chão. Nem ao menos conseguiram se tocar.

Ela estava num fogo de dar medo.

Ele percebeu. Sentiu os seus odores e descobriu que ela estava no cio. Sua testosterona atingiu picos inimagináveis.

A sua antiga cachorra apareceu.

– Podem esquecer essa história de se acasalar. Não vou querer encher minha casa de filhotes de homem.

...

Os dias foram se tornando tediosos.

Sem fêmea. Sem a sua vida social de outrora. Sem os seus passeios.

O que havia acontecido?

O que haviam feito com ele?

Cuidar do quintal, rosnar para os outros, pegar o jornal eram ações corriqueiras que agora faziam parte de sua rotina.

Dormiu para ver se, ao despertar, trariam a sua vida de volta.

Acordou se coçando por causa de pulgas e carrapatos que o sugavam e o consumiam.

Nunca mais teria a sua vida de volta.

Nunca mais seria livre.

Para o resto da vida teria a sensação de que a natureza estava se vingando dele.

O homem suspirou fundo e voltou a dormir.

domingo, 15 de agosto de 2010

No começo era o verbo... Já no futuro...


No começo era o verbo... Já no futuro...
Tudo em sua casa era da mais alta tecnologia.
Filho de um grande empresário no ramo de computação e robótica, ele havia herdado toda a fortuna do pai, tornando-se o presidente daquela enorme companhia.
Não poderia ser diferente.
Sempre vivera em meio a robôs quase humanos, computadores e novidades tecnológicas desenvolvidos pela empresa de seu pai.
Era, quando criança, muito desligado do contato com as pessoas. Vivia trancado em seu quarto, que passou a ser o seu mundo, a sua comunidade, a sua família...
Dentro dele se sentia conectado com o mundo, longe, um peixe fora d’água.
As poucas palavras que trocava com sua família era no caminho de casa para a escola, necessidade que fazia por obrigação, ou nas raras conversas com colegas de escola, ambiente para ele chatíssimo, pouco atraente e sem muita tecnologia ou que mantinha contato com tecnologia considerada por ele há muito superada.
Seus pais também eram ligados às novidades tecnológicas e em diversos momentos do dia, seus diálogos se davam pelo MSN ou coisa parecida.
Mesmo adulto, seu mundo continuava sendo seu quarto e, depois da morte de seus pais, assassinados por um robô que tivera seus direitos trabalhistas usurpado, exemplarmente condenado ao desmanche, ele assumiu a companhia e a comandava a distância, tendo diversos robôs à sua disposição para as ordens imediatas aos seus subordinados.
Raríssimas vezes ia à companhia.
Quando o fazia, o alvoroço era total. Os empregados entravam em pânico por vê-lo fora de seu habitat e por sentirem de perto o seu mau humor e a sua tirania.
Seu trato era mil vezes pior que o tratamento que os robôs chefes dispensavam aos funcionários.
Vivia muito só, sempre conectado à Internet até altas horas da madrugada, dispensando enorme tempo de sua existência ao comanda de sua companhia e de suas máquinas.
Mas o ser humano necessita, sempre ou de vez em quando, de uns afagos, de uns carinhos, de uma companhia do sexo oposto para lhe dar atenção e prazer. Nessas horas, era só buscar um site de relacionamentos íntimos, escolher a mulher que mais lhe agradava, esperar a mensagem de que nenhum vírus (nem real nem virtual) fora detectado, pagar pelo programa e iniciar o download.
A mulher da tela do computador se personificava em seu quarto em questão de minutos para satisfazer-lhe os desejos carnais.
Saciada a libido, dava-se início ao upload e ela desaparecia de sua cama da mesma forma que surgira em seu quarto.
Trabalho, trabalho, trabalho...
Até que o corpo pediu mais prazer.
Todo o seu ser fervia de desejo.
Sua boca ansiava pelo toque.
Seu órgão parecia querer explodir.
Nova busca na internet. Achou a mulher dos seus sonhos, esperou com ansiedade a mensagem de que nenhum vírus fora detectado, efetuou o pagamento beirando o desespero, mas quando foi fazer o download, apertou a tecla errada e, antes que pudesse desfazer o erro, seu corpo começou a desaparecer começando pelos pés, subindo por suas pernas e tomando agora todo o seu tronco, mãos, braços e, por último, a cabeça.
O homem desapareceu.
Piscando na tela do computador somente a mensagem:
Upload realizado com sucesso!