Vida de cão
Sidnei Alves da Rocha
O homem acordou pela manhã sentindo-se sufocado.
Aquele nó na garganta que o deixava sem ar era incomum, coisa que jamais sentira.
Passou a mão pelo pescoço e percebeu que em volta dele havia uma coleira. Enganchada nela pendia uma corrente.
Suou frio. Desesperou-se. Tentou buscar na memória alguma lembrança, mas ela não veio.
Olhou em torno de si e percebeu-se dentro de uma casa minúscula.
Procurou por sua mulher. Não a viu. Tampouco sentiu seu cheiro.
De cócoras, saiu da casa.
Viu que a outra extremidade da corrente estava firmemente entrelaçada a um arame que estava pregado a sua casa e percorria toda a extensão do quintal, ficando preso a um canto do muro.
Levantou-se e correu em disparada no sentido contrário ao arame.
A corrente se esticou e quase o enforcou, jogando-o de costas no chão duro e seco do quintal.
A falta de ar voltou e junto com ela vieram fortes dores nas costas e no pescoço.
Levantou-se, tomou uma certa distância e correu novamente, agora um pouco mais devagar.
Tentou mais duas vezes. Como resultado obteve uma maior dor nas costas, um quase desmaio e uma ferida no pescoço que latejava a cada batida de seu coração.
Na quinta tentativa um elo da corrente se abriu e ele finalmente se libertou.
Correu para o portão, encontrou-o aberto e em disparada ganhou as ruas.
Aquilo só podia ser um pesadelo. Logo que acordasse, passaria. Mas ele já estava acordado, muito bem acordado.
Dirigiu-se ao banco mais para buscar um pouco de lucidez do que para ver o saldo.
Encontrou a porta aberta e entrou.
Olhou assustado para as filas, para os caixas eletrônicos e para os clientes e funcionários do banco.
Havia vacas, touros, cachorros, gatos, coelhos e porcos, cada um portando o seu cartão de crédito ou débito.
– Quem deixou esse homem entrar? – gritou o gerente, um buldogue de terno e gravata sentado a uma escrivaninha.
O guarda, um mal-encarado pitbull, agarrou-o pelos colarinhos e o enxotou dali, arremessando-o no meio da rua.
Depois de alguns minutos no chão, o homem recuperou as forças, espantou a tontura que sentia e correu enlouquecido.
– Está louco! – gritaram – chamem a carrocinha!
Na tentativa de fugir dali, foi para o campo.
Com certeza lá toda aquela loucura se dissiparia. A volta da sanidade seria uma consequência lógica. Ares campestres transformam as insanidades em normalidades. Tudo se resolveria.
Não se resolveu.
Em uma mangueira, uma vaca ordenhava uma mulher.
Mais à frente, um porco amolava uma faca enquanto um homem cevado olhava para ele com desespero, prestes a ser sacrificado e ter a sua carne transformada em porções de filé, contra-filé, maminha... Seu couro seria frito e transformado em deliciosos torresminhos.
A loucura estava aumentando e ele, com medo de virar carne para as refeições suínas, correu em disparada rumo à cidade.
No mercado a diversidade de bichos fazendo compras era enorme. Observou que as carnes humanas eram muito apreciadas, já que esta parecia ser um item obrigatório em todos os carrinhos e cestas dos fregueses.
Definitivamente os animais haviam comido carne humana e tomado gosto pela coisa. Quem sabe estivessem pensando no churrasco de domingo.
Em uma embalagem no freezer havia testículos humanos. Diziam ser afrodisíaco.
Saiu do mercado enlouquecido e a carrocinha o capturou.
Levado ao hominil, encontrou outros como ele, mas não havia diálogo. Um rosnava para o outro, soltavam alguns grunhidos e só.
Alguns dias depois ouviu vozes conhecidas e reconheceu seu antigo cachorro que chegava com a coleira e a corrente.
Sentiu uma vontade enorme de balançar a bundinha. E assim o fez.
Enquanto seu cão o amarrava, sentia uma coçadinha gostosa em sua cabeça. Ao olhar para a perna de seu cachorro, sentiu uma vontade enorme de agarrar-se a ela.
Segurou-a com as duas mãos e começou a fazer movimentos de vai e vem. Ele não gostou e o chutou. A dor foi enorme embaixo das costelas.
Não se lamentou. Não chorou. Não sentiu raiva de seu cão. Apenas continuou abanando a bundinha em sinal de satisfação.
Foi levado para o mesmo canto do quintal, na mesma casinha, ficando amarrado ao arame.
Viu sua mulher acenando para ele. Mas ela estava presa do outro lado.
Um correu ao encontro do outro, mas suas correntes se esticaram, derrubando-os no chão. Nem ao menos conseguiram se tocar.
Ela estava num fogo de dar medo.
Ele percebeu. Sentiu os seus odores e descobriu que ela estava no cio. Sua testosterona atingiu picos inimagináveis.
A sua antiga cachorra apareceu.
– Podem esquecer essa história de se acasalar. Não vou querer encher minha casa de filhotes de homem.
...
Os dias foram se tornando tediosos.
Sem fêmea. Sem a sua vida social de outrora. Sem os seus passeios.
O que havia acontecido?
O que haviam feito com ele?
Cuidar do quintal, rosnar para os outros, pegar o jornal eram ações corriqueiras que agora faziam parte de sua rotina.
Dormiu para ver se, ao despertar, trariam a sua vida de volta.
Acordou se coçando por causa de pulgas e carrapatos que o sugavam e o consumiam.
Nunca mais teria a sua vida de volta.
Nunca mais seria livre.
Para o resto da vida teria a sensação de que a natureza estava se vingando dele.
O homem suspirou fundo e voltou a dormir.